No início do mês, a Garcês escreveu uma publicação sobre feminismo. Como não podia deixar de ser, a publicação gerou polémica e comentários ignorantes e ofensivos. Estou desde o momento em que li o texto a tentar escrever sobre feminismo, igualdade de género e tudo o resto, mas, até ontem, não sabia como organizar todas as coisas que queria dizer. Mas ontem houve uma final de um Grand Slam. E foi a pior final que já vi. Um momento que devia ser de festa e de celebração tornou-se num circo mediático e o foco não está em quem ganhou, mas em quem teve um comportamento muito pouco digno da jogadora que é.
Para quem não sabe do que estou a falar, eu vou resumir: a final feminina do US Open realizou-se ontem, entre Naomi Osaka e Serena Williams. Foi a primeira final da Osaka (e de uma japonesa) num Grand Slam. Para a Serena já não é novidade, visto que ela já ganhou 23 slams, fora todas as outras coisas que já ganhou, não é? Pois, muito bem. A Osaka ganhou o primeiro set, claramente superior. No segundo set esteve em desvantagem mas recuperou-a e estava à vista a vitória. Mas quando o resultado estava 3-4, com a Serena em desvantagem, começou uma das cenas mais tristes que já vi em ténis. O árbitro, português, Carlos Ramos deu três warnings (são avisos, faltas) a Serena, que resultam, num jogo perdido, ou seja, os 3 avisos equivalem a um jogo de serviço para Osaka. Fica 3-5. Um joguinho apenas para Osaka ser campeã. E a Serena passou-se. Berrou com o árbitro, com supervisores. Um comportamento que uma campeã não devia ter.
A penalização que o árbitro deu à Serena está prevista nas regras de um Grand Slam. Não foi invenção dele. O treinador tenta dar indicações? Warning. O/A jogador(a) destrói material? Warning. Neste caso, por ser a segunda, é um ponto de penalização. O/A jogador(a) expressa verbalmente algo considerado abuso verbal/insultos para com um árbitro/oficial, adversários, espectadores ou outras pessoas? É proibido. Terceiro warning. Jogo de penalização. Ele cumpriu as regras e todos deviam fazê-lo. Se não o fazem a culpa não é deste árbitro que não teve medo de cumprir regras, não importa se a jogadora é a Serena ou se é uma desconhecida qualquer. Regras são regras. Mas para a Serena não é assim. E o público, maioritariamente a torcer pela jogadora da casa, apupou o árbitro e a Osaka, prestes a ganhar o primeiro Grand Slam. É muito triste.
Mais triste ainda é que a Serena quis transformar tudo isto numa questão de discriminação de género. E isso não se faz. Lamento, mas não. Porque não é uma questão de género. É uma questão de regras. Se as regras não estão certas então mudem-nas, mas não culpem um árbitro por as fazer cumprir, mesmo que outros não façam. O José Morgado escreveu um texto de opinião no Bola Amarela em que diz que a Serena é melhor do que isto. E é. Ele também diz: Carlos Ramos (…) nunca será acusado de não fazer cumprir as regras. O que o português fez ontem, no maior estádio do Mundo, com a maior campeã da história do ténis em court, é um ato de coragem. Ninguém deveria ter de ser escoltado do seu local de trabalho depois de apenas cumprir aquilo que vem escrito nas regras. Em conferência de imprensa, Serena Williams perdeu totalmente a noção: distorceu os factos e transformou o caso numa questão de sexismo e feminismo. Como seria de esperar, foi fortemente apoiada por um setor social muito específico no seu país, que muito provavelmente nunca viu um encontro de ténis na vida. Williams diz que nunca um homem levou um jogo de penalização por chamar ‘ladrão’ e ‘mentiroso’ a um árbitro. Faltou na sala de conferências um jornalista que lhe perguntasse quantas vezes ela viu um homem chamar tais nomes a Carlos Ramos. Em vez disso, preferiram bater palmas o que, sinceramente, me envergonhou…
E juro que se visse o José neste momento lhe dava um abraço e os parabéns, porque a verdade é esta. E ainda há mais. Estamos num momento social em que as questões de género estão a ganhar cada vez mais destaque e isso é importante. Mas transformar tudo numa questão de género e, acima de tudo, transformar isto numa questão de género deixa-me muito triste. Isto não é uma questão de género, ao contrário do que algumas pessoas desinformadas (e que percebem tanto de ténis como eu percebo de paraquedismo) já andam para aí a partilhar. A Serena não foi discriminada. Em momento algum. Quebrou regras e foi sancionada. Não é isso que se espera de um árbitro? Fazer cumprir regras? Pensava que sim…
E quando ela diz que nunca viu um homem ser punido assim no circuito está a fazer aquilo que eu mais detesto: comparar o incomparável, ir buscar exemplos que não têm qualquer relação. Porque fazer algo errado só porque um homem fez e não foi punido é ridículo. Porque isto não é uma questão de género. Porque ao tornar isto um caso de sexismo está a desvalorizar todos os verdadeiros casos de sexismo. A Serena devia saber mais e melhor, devia fazer mais e melhor, devia ser um exemplo. Porque quando pediu, na cerimónia de entrega de prémios, que parassem com os apupos porque a adversária merecia ter ganho o mal já estava feito. Porque eu tenho a certeza de que o Carlos Ramos faria o mesmo a um jogador.
Não podemos transformar tudo numa questão de género, não podemos catalogar tudo como discriminação de género, não podemos perder a noção e ter atitudes que envergonham outras mulheres, outras jogadoras, outros jogadores e um desporto. Acho bem que ela continue a lutar pela igualdade, mas quando tiver razões para isso.
É uma questão de género quando as mulheres não podem vestir o que querem, quando não podem dizer o que pensam. É uma questão de género quando uma mulher tem medo de andar sozinha na rua, quando tem de ter à mão algo para que possa tentar proteger-se de uma possível ataque. É uma questão de género quando não recebemos o mesmo que um homem quando temos as mesmas funções, quando somos vistas como mais fracas, quando discriminam a decisão de uma mulher ter uma família e filhos. É uma questão de género quando nos tentam agredir, quando nos tentam violar (ou o fazem mesmo), quando não valorizam o que fazemos por sermos mulheres. É uma questão de género quando alguém (seja de que género ou de que idade for) pensa que o lugar da mulher é em casa. O lugar da mulher é onde ela quiser. É uma questão de género quando dizemos não e fingem não o ouvir. É uma questão de género quando uma mulher não tem os seus direitos básicos. É uma questão de género quando dizem que uma mulher foi violada porque, claramente, estava a pedi-las. É uma questão de género quando uma mulher se queixa de algo de forma completamente justificada e dizem que é exagero. É uma questão de género quando uma mulher diz algo certo e é intimidada por isso.
É uma questão de género quando uma mulher veste algo e é enxovalhada por isso: sim, Serena, aí foi uma questão de género. Mas foi em Roland Garros. É uma questão de género quando uma mulher não pode mudar a camisola em público, deixando à vista um soutien e é sancionada por isso: sim, Serena, este caso também foi uma questão de género. Não é uma questão de género quando um árbitro sanciona uma jogadora por algo que é suposto sancionar. E se um homem não pode falar assim com uma mulher, uma mulher também não o pode fazer com um homem, Serena, não pode. Isso é que é igualdade. Porque, quando tentamos transformar em questão de género aquilo que não é, minimizamos todas as vezes em que foi uma questão de género, desrespeitamos todas as mulheres que sofreram, sofrem ou vão sofrer discriminação por serem mulheres. E isso não pode acontecer.
*A imagem que ilustra esta publicação foi retirada do site da WTA*
Não sigo ténis e, por isso, não entendo muito das regras do mesmo. Mas hoje quando vida esta polémica nas noticias percebi imediatamente que a Serena estava a distorcer factos. O árbitro limitou-se a fazer (bem) o seu trabalho, não tem nada a ver com sexismo.
Sinto que, infelizmente, as questões de género começam a ser usadas para tudo e para nada, retirando o foco quando são necessárias. Momentos destes são lamentáveis independentemente de quem os pratica, mas vindo de alguém que, supostamente, conhece mais do meio a dormir do que nós com 20 olhos, não faz sentido. Porque, lá está, a Serena é muito melhor do que isto. E comprometeu a sua postura.
Claro que é frustrante perder, ainda para mais com penalizações que poderiam ser evitadas, mas isso não é culpa do árbitro, é culpa de quem infringe as regras. Um bem haja a Carlos Ramos, por ter cumprido o seu papel. Tomara que fossem todos assim, se calhar, ocasiões destas seriam minimizadas
Podia tentar acrescentar algo ao que disseste, mas só me resta dizer que concordo plenamente. Esta atitude dela só retira credibilidade ao movimento feminista "verdadeiro", se assim o quisermos chamar. Que lutemos todas, sim, mas que nenhuma de nós o faça ou use como desculpa para tudo, mesmo o que não tem justificação. Esperava mais dela!
Jiji
Não podia concordar mais com o que escreveste! Estava a ver a notícia e achei mesmo que ela estava a tentar "safar-se " com a desculpa do género e não aceitou nem admitiu que errou…
É verdade que a parte da roupa é mesmo uma questão de género que me deixa muito frustrada. No entanto, o comportamento da Serena deixou-me muito triste, porque não era uma questão de género, mas sim muita lata da parte dela…
Não vejo ténis nem percebo nada das regras, mas quando vi a notícia na televisão, percebi imediatamente que a Serena não tinha razão, e que isto não era uma questão de género, ao contrário daquilo que ela estava transmitir. A única coisa que ela disse de mais acertado é que, muitas vezes, os homens não são penalizados, e as mulheres são. Mas isso não era um assunto para ser abordado naquela final, nem com aquele árbitro, que não fez mais do que sua obrigação, fazer cumprir as regras.
É triste ver situações destas porque descredibiliza o feminismo e faz com que muitos não entendam o verdadeiro significado do movimento.
Beijinhos
Blog: Life of Cherry
Só li, muito por alto, toda esta confusão e, embora não saiba nada de ténis, este teu texto é capaz de esclarecer tudo e mais alguma coisa! Não sei que mais dizer para além disto. O pessoal hoje em dia quer tanto ajudar, que por vezes só atrapalha. O melhor, por vezes, é ficar calado, pensar de cabeça fria e aí sim agir para o bem de todos!
Sei que a Serena é uma grande jogadora e bem consagrada e, com o estatuto dela, ter estas atitudes em público apenas glorifica o desinteresse genuíno acerca de temáticas que merecem receber a atenção que realmente precisam. É triste, somente.
LYNE, IMPERIUM