conto: verdade ou consequência?

 

o conto que se segue foi escrito entre os dias 22 e 24 de março de 2022.

é uma história ficcional. qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. tirando as frases que roubei à descarada a uma conversa de Instagram.

 

Verdade ou Consequência?

Bastava saber-te mais perto e o meu corpo começava a preparar-se para ti. Podias chamar-lhe tesão, mas acho que era mais do que isso. Química, física, todas as ciências exatas e inexatas nos deviam estudar. E quando chegavas… ai, quando chegavas. Beijavas-me com a urgência de quem contara os minutos até ali estar. Eu dava-te a mão, indicando o caminho que já devias saber de cor, da entrada até à minha cama, e tu usavas a mão livre para começar a explorar o meu corpo. Beijavas-me sempre com essa tal urgência, com vontade, com necessidade. Davas a entender que precisavas tanto de me sentir quanto eu precisava de te sentir. A tua boca demorava-se no meu pescoço e a minha pele arrepiava-se, desejosa de que continuasses a explorar cada parte de mim. Nunca fora colonialista, mas queria que invadisses o meu corpo e decretasses que, a partir dali, eu era tua. Só tua. Total e irrevogavelmente tua.

Irrevogavelmente, como eu fingia que tu eras meu. Só meu. Mesmo sabendo que, provavelmente, havia, nesta cidade, mais camas que te recebiam. Ainda assim, quando estavas na minha cama, conseguia sempre fingir que eras só meu e nunca pensava se beijarias outras como me beijavas a mim, se te vinhas com as outras como te vinhas comigo, se dizias os nomes das outras como dizias o meu. Isso ficava para depois, depois de ires embora. Enquanto estavas aqui eu agia como se fosse a única, a tua preferida. Era muito fácil fazê-lo porque me fazias sentir assim, como se fosse a tua preferida, ainda mais quando te deixavas ficar cá por casa e, depois de nos limparmos, te deitavas na minha cama, a ver-me trabalhar.

Às vezes fazias-me perguntas sobre o trabalho: estás a escrever sobre o quê? Já escreveste sobre mim? Posso ler o que escreveste? E eu respondia: estou a escrever sobre a vida. Fosse sobre o que fosse, era sobre a vida. Mas depois mentia: não, nunca escrevi sobre ti. E não, não podias ler o que estava a escrever — temia que te reconhecesses nas palavras como eu te reconhecia ao lê-las, mesmo quando não escrevia sobre ti.

Gostava de quando ficavas a ver-me trabalhar. Ficavas tão interessado no meu trabalho e, por vezes, reconhecia em ti uma expressão que parecia orgulho, embora não compreendesse porquê. Era fácil ter-te aqui, talvez por isso ansiasse os dias em que me escolhias como companhia. Conversávamos sobre o mundo. Sobre os super-heróis que eu não conhecia, sobre as viagens que gostávamos de fazer e não podíamos porque não tínhamos dinheiro, sobre traumas, sobre cicatrizes, sobre amor, sobre guerra. Tu parecias apaziguar a ansiedade. Todas as perguntas que me rodeavam quando não estavas pareciam respeitar-te e deixavam a casa assim que tu entravas. Quando saías, elas voltavam.

Quanto dinheiro tenho na conta? Quantas faturas ainda não me pagaram? O que compro para o bebé da Maria? O que compro para prenda de casamento do Joel? O que vou fazer depois do doutoramento, quando for uma doutora no país dos doutores? Que resposta darei no próximo almoço de família quando me perguntarem como ou onde está o meu namorado, para quando um casamento, e os filhos, não achas que estás na idade de começar a pensar nestas coisas? Tantas perguntas que tu fazias desaparecer.

Na terapia discutíamos este efeito que tinhas em mim. Lá, podia admitir que estava apaixonada e que tinha medo de te dizer porque dizer-te que estava apaixonada significava reconhecer que o nosso prazo de validade expirara — enquanto fosse casual, sem compromissos, estava tudo bem; quando houvesse sentimentos surgiriam as complicações, estava tudo mal. No fundo, enquanto eu conseguisse evitar falar de sentimentos podíamos continuar a conquistar os nossos objetivos: tu querias a parte casual para te divertires; eu queria a parte casual para mostrar que conseguia ser moderna e divertida.

Nos jantares com os meus amigos falávamos sobre a minha supostamente interessante vida amorosa e todos tinham uma opinião a partilhar sobre nós. Eu nem sabia se podíamos usar assim este pronome plural, mas aceitava-o como aceitava as opiniões dos meus amigos — sem dar grande importância.

Estes jantares eram uma espécie de rotina para nós. Uma vez por mês, em datas difíceis de combinar e sempre com um ou outro membro ausente, encontrávamo-nos na mesma pizzaria para jantar e depois seguíamos para o bar que frequentávamos há anos. Uma vez por mês, dividíamos a conta enquanto nos sentíamos uma espécie de adaptação portuguesa de uma qualquer série americana sobre grupos de amigos, a beber vinho e a comer a melhor pizza à qual conseguíamos ter acesso por ali.

Se fôssemos a tal adaptação portuguesa de uma série americana, conseguíamos até preencher os estereótipos habituais. Havia o Ricardo, que negava a possibilidade de monogamia e a quem nunca tínhamos conhecido uma namorada — ou namorado. Depois, havia a Maria, numa relação estável há uns dois ou três anos, grávida de quatro meses, a planear baby showers e a ler os melhores blogues de maternidade enquanto dava connosco em doidos ao falar constantemente sobre pré, pós, durante e tudo o que fosse parto. O Rafael era o elemento mistério do grupo, com um namoro à distância e um trabalho estranho que não compreendíamos, mas que devia ser importante porque era bem pago. Ainda havia, claro, o casal que nos fazia acreditar no amor: o Joel e a Margarida. Namorados para aí desde o primeiro mês da universidade, tinham perdido a virgindade um com o outro, viviam juntos, iam casar no Verão numa quinta qualquer que arrasava nas fotografias no Instagram e já tinham uma lista de nomes para quando decidissem ter filhos. Sobrava eu, a estudante de doutoramento, a ser paga para escrever a recibos verdes, numa relação casual há meio ano, claramente a esticar a corda, definitivamente a confundir conceitos relacionais.

Deste grupo, tu só conhecias o Ricardo, que dividia este apartamento demasiado caro comigo. Quando ele não estava — o que acontecia muitas vezes — deixávamos a nossa roupa espalhada pela casa, nem sempre chegando com alguma peça de roupa ao quarto, muitas vezes dando um uso diferente ao sofá, algumas vezes pensando que daria muito trabalho quando fizéssemos o percurso inverso à procura de roupa interior.

Foi então que veio aquela tarde de março. Chovia. Eu tinha um disco de Bon Iver a tocar enquanto escrevia. Devia estar a escrever a tese ou um dos artigos que precisava de entregar, mas escrevia apenas por escrever. Escrevia sobre a vida, sobre o amor, sobre ti. Por este andar, acabaria mais depressa este livro do que a tese. O telemóvel tocou. Eras tu. Atendi. “Estás em casa?”, perguntaste. Respondi que sim. “Posso passar aí? Quero falar contigo sobre uma coisa”. Não sabia sobre o que querias falar, mas assumi logo o pior. Guardei o ficheiro em que estava a trabalhar, troquei o disco de Bon Iver por uma lista aleatória do serviço de streaming, escovei o cabelo, coloquei perfume e tocaste à campainha quando eu estava a lavar os dentes. Tinhas sido demasiado rápido.

Esboçaste um sorriso assim que saíste do elevador, o mesmo sorriso que eu costumava fingir ser motivado por eu ser a tua pessoa preferida. Puxaste-me contra ti e beijaste-me. Foi um beijo diferente, mas o meu corpo reagiu a ti da mesma maneira. Não havia urgência, apenas vontade e algo mais que eu não conseguia identificar. O meu corpo pedia que continuasses a explorá-lo, mas afastaste-te. “Espero não estar a atrasar o teu trabalho”, disseste. “Está tudo controlado”, respondi, atordoada. Encaminhei-te para a sala, que desta vez nos recebia vestidos.

“Estás apaixonada por mim?”, perguntaste. Eu não sabia o que responder. Devia confirmar ou mentir? “O que é que isso importa?”, perguntei de volta. “Importa tudo”, disseste. “O que raio estamos a fazer?”, insististe. De repente, as perguntas que me invadiam perderam o respeito que tinham por ti. Agora, tinham mais uma pergunta no grupo, mais uma pergunta para a qual eu tinha de ter resposta: o que raio estamos a fazer?

Devias ter percebido que eu ainda não encontrara as palavras que queria dizer porque começaste um discurso meio improvisado, meio pensado durante várias noites. “Acho que isto entre nós deixou de ser casual há muito tempo. Continuamos a fingir que é casual, mas eu passo dias e dias contigo. Se calhar tu ainda falas com outros ou sais com outros, mas eu só te quero a ti, só mesmo a ti, e não sei por que caraças continuo a fingir que há outras. Por isso eu quero saber se estou louco ou se sentes o mesmo. Vá lá, Leonor, verdade ou consequência? Podes dizer a verdade, eu não me importo de ficar para ser a tua consequência.”

Verdade ou consequência? Verdade — de repente, respostas para todas as perguntas. Tenho 752 euros e 27 cêntimos na conta. Há três faturas em atraso. Vou comprar um pack de fraldas para o bebé da Maria. Compro um gira-discos para o Joel, dividido pelo resto do grupo, para ser mais barato. Quando for doutora neste país de doutores vou fazer o que sempre quis, que é dar aulas e escrever. Quando me perguntarem pelo namorado vou dizer que está bem e que não se preocupem com o casamento porque não vão ser convidados e os filhos vêm quando vierem, ainda nem tenho trinta anos. O Ricardo nega a monogamia, mas dorme todas as semanas com a mesma pessoa. A Maria não percebe que é a única que já está a pensar em bebés. O Rafael ganha bem, mas odeia o trabalho que tem e não sai porque tem medo do desemprego, como todos nós. O Joel e a Margarida podem amar-se, mas o amor deles não é perfeito, como nenhum é.

Consequência — nós… nós somos aquelas pessoas que se afastam muito no mar e parecem aventureiras, mas não admitem que têm medo de perder o pé ou de ser arrastados por uma onda. Somos os frutos desta geração que já não sabe viver sem um telemóvel, mas que ainda pensa nas tardes que passava a ver desenhos animados na televisão. A geração que conhece pessoas na internet, mas não sabe criar relações fora dela. A geração que tira uma licenciatura e pensa não ser suficiente, que segue para mestrado e acha que foi demasiado. A geração que leva com os traumas do passado e os medos do futuro. Que gasta ordenados em medicação para ansiedade e restaurantes da moda. Lemos Sally Rooney, ouvimos Taylor Swift e fingimos ter aprendido tudo o que havia a aprender sobre amor, mas depois não sabemos o que fazer com ele.

“Não há mesmo outras?”, perguntei. “Pareces desiludida”, disseste. “Se não há outras e sentes o que eu sinto então isto foi tudo real, não estava só acontecer na minha imaginação”, disse. “Achavas que estava a acontecer na tua imaginação?”, perguntaste. “Achava que só mesmo na minha imaginação é que tu podias sentir o que eu sinto”, respondi. “Achas que se tentarmos vai ser um erro?”, perguntei. “Não, não acho. Mas se for um erro que se lixe.”

É curioso, porque acreditava realmente em ti. Mais do que isso, via o nosso tempo juntos de uma forma diferente agora. Deixavas-me sempre escolher a música, puxavas-me sempre para junto de ti quando passavas a noite, incentivavas-me porque acreditavas, tomavas-me como tua, total e irrevogavelmente tua, porque eras total e irrevogavelmente meu. “Verdade ou consequência?”, perguntavas. Mas não havia uma escolha a fazer. Essa pergunta não fazia sentido. Não era verdade ou consequência. Era verdade, era consequência. O que mudaria agora? Que novas perguntas terias de apaziguar? Chovia lá fora. Cheiravas a menta e tabaco. Conhecias cada parte de mim, já beijaras cada parte mim. “Verdade ou consequência?”, perguntaste de novo. Sorri, preparada para te responder. Verdade ou consequência?

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