Pronto, estalou o verniz. Durante a semana passada no Bookstagram, que é como quem diz nos perfis de Instagram dedicados a literatura, começou uma polémica interessante. Interessante porque tem muito que se lhe diga e porque já foi tema de conversa entre mim e um amigo algumas vezes.
De forma resumida, a polémica assenta em duas visões: por um lado, a das pessoas que pedem constantemente livros a autores; por outro lado, a das pessoas que acusam quem pede esses livros e que apontam culpas da crise do mercado literário. Estando dos dois lados da barricada, ou seja, sou uma autora a quem já pediram livros e já recebi livros de forma gratuita, tenho uma opinião formada sobre o assunto há muito tempo e tenho muito a dizer sobre isto.
Sobre pedir livros a autores enquanto criador de conteúdos literários
Antes de mais, deixa-me dizer-te que nunca pedi um livro à borla a um autor. Já recebi alguns livros sem pagar, por oferta de autores, mas nunca os pedi. Nunca o fiz e, provavelmente, nunca farei porque conheço o outro lado da questão e sei que, a fazer o pedido, devo fazê-lo à editora ou então pegar no meu dinheirinho e comprar o livro.
No entanto, tal como quem fala de beleza recebe produtos de beleza, quem fala de livros tem de receber livros. É um dado adquirido. Alguns perfis literários conseguem uma taxa de conversão razoável, pelo que um livro que eles recomendem pode ter mais vendas do que um livro que não aparece em qualquer lado. É por isso que é necessário ter o trabalho destas pessoas em conta quando se trata de promover um livro. Hoje em dia, a promoção de um produto tem de ter em conta quem trabalha redes sociais e plataformas do género.
Como ainda é difícil ganhar propriamente dinheiro com este tipo de conteúdos, a forma que muitos encontram de ser pagos é em géneros, ou seja, recebendo livros. Fazem parcerias com editoras e com redes livreiras, recebem uns livros em casa e tudo bem. Mas, por vezes, acreditam que a forma mais fácil de conseguir um livro é falando directamente com quem o escreveu.
Tal como disse, nunca pedi livros a autores. Se calhar falta-me a lata, mas provavelmente é porque sei qual é a minha reacção quando recebo certos pedidos.
Sobre receber pedidos de livros enquanto autor
Em ambos os meus livros separei um determinado número de exemplares para oferta e passatempos. Felizmente, em 2013 e 2014, não havia muitos pedidos porque não havia assim tanta gente a escrever sobre livros na internet. No entanto, eles vão surgindo, de forma espaçada. Acredito que vários autores façam o mesmo com os seus exemplares e separem alguns para oferecer ou para fazer passatempos. Normalmente, terão exemplares já destinados a oferecer a alguns criadores cujo trabalho conhecem e ficam com alguns de reserva.
Mas depois acontece algo diferente. Há uns dias fiz um passatempo. Decidi oferecer um exemplar do meu segundo livro. Eis quando, com o passatempo a decorrer, recebo mensagens de duas pessoas a pedir-me o livro. Como se não fosse curioso terem a pontaria de pedir algo quando está a decorrer o passatempo, também se notava a léguas que não acreditavam no livro nem em mim – aliás, nem me seguiam, portanto se calhar nem o meu trabalho conheciam. Rejeitei.
O que eu faço quando recebo pedidos é sempre a mesma coisa: abro o perfil, analiso o conteúdo que publicam, vejo as interacções e o número de seguidores. Depois, decido se cedo um exemplar avaliando a quantidade de livros que tenho em casa e o quanto acredito naquele projecto. Ainda há pouco tempo aceitei ceder um exemplar para um bookstagram porque gostei logo do projecto e do conteúdo.
Honestamente, para mim é agridoce receber pedidos de livros. Por um lado, uns pedidos deixam-me feliz porque há interesse no meu trabalho. Por outro lado, deixam-me frustrada. Se comprassem o livro estavam a pagar pelo meu trabalho. Eu nunca pediria pão grátis a um padeiro, por que motivo havia de pedir um livro grátis a um autor? Se se interessam por aquele livro por que motivo não o compram?
Qual o lado certo da força?
Em primeiro lugar, eu não acho que a culpa da crise literária seja dos criadores de conteúdos que pedem exemplares. Não ajuda que só peçam e não comprem, mas a culpa da crise não é deles. Eles até promovem a literatura.
Em segundo lugar, acho, isso sim, que muitos só querem realmente ter mais um livro à borla e que se estão a lixar para o autor e para os direitos de autor. Se há pessoas com projectos incríveis, também há gente que só quer receber coisas. É o que é.
Não acho que um autor tenha de ceder exemplares a todos os que pedem e arrependo-me de alguns livros que ofereci. Na mesma linha, acho uma falta de respeito haver pessoas que, quando dizemos que não temos exemplares, têm a lata de pedir um pdf. Primeiro, é pirataria, logo é crime. Segundo, are you fucking serious?
E se pedisses o livro à editora?
Eu adoro o bookstagram e o trabalho que muitas vezes fazem na promoção de livros, no entanto não consigo encarrilhar com esta ideia de se pedir exemplares aos autores. Não há almoços grátis. Portanto quando pedes um livro a um autor das duas uma: ou ele tem o exemplar em casa e dá-to, não tendo qualquer ganho monetário com isso, ou ele próprio tem de comprar um exemplar à editora, o que significa que provavelmente abdica dos direitos de autor desse exemplar porque já usufruiu do desconto de autor.
Nós, autores, queremos que as pessoas leiam os nossos livros, mas também queremos ganhar algum dinheiro que pague o tempo que passámos a trabalhar naquele livro. Quando pedes um livro a um autor não só estás a fazer com que o autor perca os direitos de autor mas também estás a tirar algo muito mais importante: o número de vendas, que, consequentemente, significam um maior alcance do autor.
Defendo que as parcerias devem ser feitas, maioritariamente, com as editoras. As editoras têm um número definido de exemplares para ceder aos departamentos comerciais de redes livreiras, comunicação social e, cada vez mais, criadores de conteúdo. Ou seja, mais do que o autor, as editoras têm uma base de fundo para poder ceder alguns exemplares.
Depois, ao criares uma relação com uma editora podes, se correr tudo bem e se gostarem do teu trabalho, conseguir algo mais: podes receber exemplares antes de saírem para o mercado, fazer parte da rede de criadores de conteúdos que recebem exemplares para promoção sem terem de os pedir ou mesmo saber novidades em primeira mão.
Além disso, quando uma editora percebe que há interesse em determinado livro tem aí um factor de sucesso: pode perceber que aquele livro merece mais atenção e promoção, pode perceber o valor do autor e junta isso à avaliação a prestação daquele livro. Sabias, por exemplo, que os livros que encontras à venda em alguns supermercados só estão lá porque são os mais vendidos em sites como a Wook?
Algumas coisas que se valorizam nos pedidos
Não importa a quem estás a pedir o livro, por favor faz o pedido de uma forma minimamente profissional. Ou seja:
- Apresenta-te, diz quem és e de que trata a tua plataforma.
- Pergunta primeiro se costumam fazer parcerias e quais os termos.
- Se quiseres o livro para um projecto específico (como agora alguns têm o projecto de ler em português), fala desse projecto e dos objectivos do mesmo.
- Explica o motivo para quereres aquele livro em específico, como é tomaste conhecimento da sua existência, o que é que te cativa no livro e no autor.
- Apresenta números: quantos seguidores tens, o alcance e as impressões das tuas publicações (caso se trate de Instagram).
- Explica qual é a tua ideia de promoção do livro: se vais ler e fazer review nas histórias, se vais fazer um vídeo ou uma publicação num blog, se planeias usar o livro como base para outro tipo de conteúdo, etc.
- Faças o que fizeres, NUNCA peças o pdf do livro. Arriscas levar um foda-se e eu digo-te já que é merecido.
Em conclusão...
A culpa da crise literária não é dos criadores de conteúdo. No entanto, muitos deles podiam fazer algo mais pelo mercado literário português. Quando muitos se queixam de que há pouco destaque para novos autores portugueses, quando os autores dizem que não conseguem viver só da escrita, isto está tudo relacionado com vendas. Lê-se pouco — vende-se pouco. Prefere-se pedir livros em vez de os comprar — não há vendas — não há dinheiro para pagar aos autores — não há dinheiro para investir em novos autores.
E eu sei que é difícil apresentar conteúdo novo se não temos livros novos para ler, mas também é difícil publicar livros novos se as editoras não têm dinheiro para os publicar. Não pode ser só oferecer livros porque alguém tem de os pagar, seja a editora, o autor ou algum patrocinador. Portanto, quando um autor recusa ceder-te um exemplar pensa em como ele está a tentar defender o seu trabalho. Não farias o mesmo pelo teu ganha-pão?
Há sempre duas faces da mesma moeda. E se é chato levar um não quando pedimos um livro, garanto-te que é mais frustrante levar nãos quando os queremos publicar.
Tenho sentido alguma [muita] tensão em relação a esta questão. E acho que há duas coisas que nunca nos podem faltar: bom senso e a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro.
Não sei se é falta de lata ou não, mas também não sou capaz de pedir ao autor. Nem às editoras, quanto mais ao autor. E mesmo o ano passado, quando fiz o passatempo para o blogue, foi um ano de juízo até ganhar coragem para perguntar à Bertrand se havia a possibilidade de disponibilizarem um exemplar. Não sei, acho que é sempre um bocadinho ingrato fazer estes pedidos, porque penso no que estamos a retirar ao autor. Principalmente, se forem novos autores à procura de conquistar o seu espaço.
Se for essa a vontade da pessoa, tenho todo o gosto em ler o seu livro e de partilhar a minha opinião, ajudando na divulgação, mas não parte de mim. Porque, lá está, não me sinto confortável a privá-la dos seus rendimentos.
Confesso que é um assunto do qual não tinha uma opinião formada, ou melhor, nem sequer me ocorria como um assunto. Muito provavelmente porque não me encaixo em nenhum dos grupos e, portanto, não era uma realidade que me tocasse. Mas é por isso que eu acho que estes artigos são bons e importantes, transportam-nos para temáticas e alertam-nos para assuntos que, caso contrário, não conheceríamos. A tua publicação foi muito enriquecedora. Obrigada!
Não foi bem isto.
“por um lado, a das pessoas que pedem constantemente livros a autores; por outro lado, a das pessoas que acusam quem pede esses livros e que apontam culpas da crise do mercado literário”. Não foi só quem pede livros a autores constantemente. Qualquer tipo de parceria foi atacada pela Helena Magalhães – tanto que ela disse que abominava parcerias mas (soube-se depois) disse há uns tempos que pedia livros a autores quando esgotou o budget mensal. Lógica? Nada. Nenhuma.
Não sabia dessa questão de ela pedir livros a autores também e concordo que não tem qualquer sentido ela criticar todas as parcerias porque, pelo que sei, ela também já recebeu livros de editoras logo isso é uma parceria.
Tal como disse no texto, eu não sou contra parcerias, mas acredito que devem ser feitas de forma pensada e estruturada – tanto pela parte dos autores e das editoras como pela parte dos criadores de conteúdos.
Embora eu tenha uma presença residual nas redes sociais (é talvez o meu handicap enquanto autora) chegou-me esta polémica aos ouvidos através de uma pessoa amiga. Em princípio não liguei muito até porque, hoje em dia, dia não é dia sem uma qualquer “polémica” ou “controvérsia”. Mas em boa hora o fiz, abrir o texto que vinha agarrado à cauda do link que me enviaram, não só pelo prazer de ler um artigo extremamente bem escrito, como pelo facto de concordar em absoluto com tudo o que a Sofia escreveu. Para quem quiser entender, está tudo dito, sem subterfúgios, mas com a elegância de um texto bem estruturado.
Também concordo com o comentário da Andreia, em que diz que é preciso bom senso. Pois é… Infelizmente, bom senso é um bem escasso em vias de extinção um pouco por todo o lado. Mais uma vez, na qualidade de autora que há dois anos resolveu aventurar-se pelo mundo dos livros publicados, identifiquei-me completamente com o último parágrafo!
Ann Yeti