os livros mudam, nós mudamos, mas… devemos mudar os livros?

Há um fenómeno literário que aprecio vivamente: a mudança. No entanto, a mudança literária surge de várias formas, com várias motivações.

Imagina que eu leio o livro X aos 15 anos. Estamos em 2009/2010. Eu adoro o livro, recomendo a toda a gente, juro que o vou adorar para sempre. Agora imagina que leio o mesmo livro X aos 28 anos. Estamos em 2023. Já li centenas de livros desde os 15 anos, já vi centenas de filmes, ouvi centenas de músicas. Estudei muitas coisas, aprendi outras tantas. Ao reler este livro aos 28 percebo que, afinal, estava errada aos 15 anos. O livro é problemático, a escrita afinal não é extraordinária e definitivamente há outros livros do mesmo género e sobre o mesmo tema muito melhores. Se for ler esse livro X daqui a 22 anos, quando tiver 50, terei ainda outra perspetiva sobre o mesmo. Se calhar já não sou tão dura com ele e percebo que tudo mudou desde que o li pela primeira vez: mudei eu, mudou o mundo. Até pode acontecer o contrário e eu não ter gostado de um livro inicialmente e depois, ao reler, anos mais tarde, gostar daquilo que li. O livro não mudou completamente, porque é o mesmo exemplar, mas a forma como é interpretado mudou porque eu mudei, o mundo mudou e, preferencialmente, alguma coisa terei aprendido por isso posso já não ter as mesmas opiniões, os mesmos interesses ou a mesma exigência.

A forma como lemos, como escolhemos o que lemos e como interpretamos o que lemos tem muito a ver com quem somos, quem fomos e quem queremos ser, mas também com o mundo em que vivemos.

Ora, se a forma como lemos muda… a forma como escrevemos também. A escrita de um livro tem muito de quem era o autor na altura em que o escreveu, mas também de como era o mundo na altura em que o escreveu. Isso reflete-se, obviamente, no livro. No tipo de história, na sociedade descrita, nas palavras. Faz sentido vir, anos mais tarde, décadas mais tarde, e substituir essas palavras porque não se encaixam no tipo de linguagem socialmente aceitável hoje em dia?

A minha resposta imediata seria um não. Quando, recentemente, se começou a falar das alterações a livros de autoras como Agatha Christie ou Enid Blyton, por conterem palavras ou expressões que hoje em dia são consideradas ofensivas, acabei por ler muitas opiniões sobre o assunto nem todas iam ao encontro da minha. Eu percebo, aceito e concordo que há linguagem exclusiva e discriminatória em muitos livros e que esses mesmos livros não podem ser lidos hoje sem uma noção da época em que foram escritos e editados. No entanto, sou mais a favor de incluir uma nota de tradução/edição no início do livro, a contextualizar a época em que surge o livro, do que sou a favor de retirar palavras como gorda.

Aliás, a Isabela Figueiredo tem um livro chamado A Gorda, que ainda não li. Devia o livro dela passar a chamar-se A Grande? A Grande quê? Eu sei o peso que a palavra gorda tem (no pun intended) porque eu cresci a ouvir essa mesma palavra ser dirigida a mim. Não é a tirar o palavra dos livros que ela deixa de existir e muito menos que deixa de ter impacto. Na verdade, talvez se torne ainda mais forte (que é outra espécie de sinónimo de gorda que me irrita).

O Ricardo Araújo Pereira escrevia, no final de fevereiro, na coluna de opinião que mantém no jornal Expresso:

Tudo tem potencial para ofender alguém — e ficar calado não é solução, porque como sabemos há silêncios que também ofendem. E, assim como uma imagem não é a realidade, também as palavras não são acções, e é por isso que não é fácil ganhar uma luta articulando o verbo “lutar”. É importante não esquecer que quando alguém diz que as palavras são como punhais está a usar uma figura de estilo. As palavras que Rushdie escreveu nos “Versículos Satânicos” são palavras. O punhal que o cegou é que é um punhal.

Acredito que sim, as palavras ofendem e nem sempre podemos escolher estar ou não nas ocasiões em que as mesmas são proferidas precisamente para nos ofender ou atacar. Mas, num livro, podemos escolher. Podemos escolher não ler. Ou, lendo, podemos escolher a forma como vamos interpretar o que lemos e, acima de tudo, podemos escolher perceber que, numa história, por vezes o objetivo é mesmo usar palavras que não soam bem, que não fazem bem. Até porque também se aprende a ver a forma como os tempos mudam. Eu preferia deixar uma criança ler um livro que diz que alguém é gordo e depois falar-lhe sobre aceitação corporal a não o deixar ler e não expor a criança à realidade do mundo, que muitas vezes foi, é e será cruel.

Há dias, o Afonso Reis Cabral escrevia no Público, a propósito de outra polémica literária sobre a qual escolho ficar calada, a seguinte conclusão:

O resto é o resto: muito barulho, uma enorme vozearia sobre livros que na verdade não é bem sobre literatura. As editoras continuarão a publicar o que entendem, os leitores a dizer o que pensam e eu a escrever o que me cativa.

E, no fundo, esta é a melhor conclusão para este assunto.

One Reply to “os livros mudam, nós mudamos, mas… devemos mudar os livros?”

  1. «sou mais a favor de incluir uma nota de tradução/edição no início do livro, a contextualizar a época em que surge o livro, do que sou a favor de retirar palavras como gorda», partilho na integra! Aliás, acredito que essa nota teria mais benefícios, porque contextualiza, não omite.
    Não acho que retirar certas palavras deixe de magoar, acho, sim, que só vai criar uma falsa sensação de proteção, de respeito. Mas como é que nós podemos perceber que algo pode magoar, que algo é errado, que discrimina, se optamos por esconder? Não me faz sentido

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