- Quando: 27 e 28 de agosto de 2023
- Gatilhos: luto; saúde mental
A Joana Bértholo andou no meu radar durante muito tempo por causa do Ecologia. Quiseram os astros que eu acabasse a ler dois livros dela em meses consecutivos. Depois de Ecologia, A História de Roma foi leitura conjunta do Discord do Livra-te e decidi arriscar, já que a sinopse não me vendia muito da história. Foi um risco com um resultado marcante: encontrei um dos livros favoritos do ano.
A História de Roma tem uma coisa curiosa: a sinopse não lhe faz qualquer justiça. A sinopse dá a entender que é um romance banal, de duas pessoas que tinham uma relação, a relação não resultou e a história é escrita de forma a explicar a história da filha que eles não tiveram. Mas o livro vai muito além disso. É aquela história de amor, mas também são as questões da vida: a maternidade, a sociedade, a família.
Tudo surge num encadeamento tão bonito, tão natural, que toda a escrita, mesmo a forma de escrita — o uso de certo tipo de palavras, aquela escrita mais intelectual, mais pensada, com algum tipo de palavras um bocadinho mais complicadas, de fazer uma pessoa ir ao dicionário várias vezes — acaba por encaixar tão naturalmente porque aquela personagem é assim. É uma personagem que estuda — ela vai fazer um doutoramento em Estudos Culturais — portanto tem uma escrita muito diferente, vai usar palavras diferentes.
Depois, cada local onde a história se passa parece acrescentar algo e ser também personagem. Ler sobre Lisboa foi maravilhoso e notei, na forma como a Joana escreveu Lisboa, uma escrita de alguém que se reconciliou com a cidade, alguém que desculpou a cidade e é algo com que me consigo identificar. E ler aquela forma de ver Lisboa foi muito bonito, toda aquela ideia de a cada Lisboa que volto é outra…
Ri-se do nosso espírito gregário e chama-nos die portugiesische Enklave. Reclamamos. É certo que se fala português, mestiçado e corrompido, mas pouco se debate Portugal. Somos ubiquos, além-fronteira, uma das primeiras gerações cibernéticas. Éramos miúdos à entrada de Portugal na CEE, atingimos a maioridade com a viragem sincrónica do século e do milėnio e quisemos ser do mundo: fomos bolseiros dos programas Erasmus, Leonardo, InovArte, SVE. Fizemos au-pair e interrail. Desfrutamos de mobilidade facilitada como nenhuma geração antes, viajamos em compartimentos mínimos, dormimos em tendas na praia e na garagem de alguém, surfámos sofás gratuitos e as nossas emissões de carbono nunca nos perdoarão os anos passados a abusar dos voos low-cost. Mantemos amantes em capitais vizinhas, romances sazonais vividos em fins-de-semana pendulares. Amamos em várias línguas.
O livro parece, em partes, ser auto-ficção. O facto de a Joana Bértholo ter estado realmente em Buenos Aires, a trabalhar no mesmo local, e de ter feito doutoramento em Estudos Culturais na Alemanha… há ali vários toques. Seja auto-ficção ou não, seja só a Joana a emprestar características à personagem que também se chama Joana, acho que dá um envolvimento diferente. Ainda por cima ela fala diretamente para a personagem masculina, o que nos liga ainda mais à história e nos faz ter uma relação diferente com aquilo que estamos a ler.
Ela não quer ter filhos, mas ela não quer não ter filhos. Toda esta questão da maternidade, tendo em conta que ela não teve a filha que talvez fosse suposto ter com ele, acaba por fazer surgir mais a derradeira questão: o que teria sido se…?
É um livro muito complexo, com muitas camadas, e é o retrato de uma geração também. Uma geração que quer conhecer o mundo, ver tudo, aprender tudo e são tão ultra-capacitados, estudam tanto e depois vivem todas estas crises económicas e bolhas imobiliárias. Ela fala de Berlim e nós sabemos o que aconteceu em Lisboa a seguir: num dia conseguiam pagar um T2 enorme com um ordenado simples ou só uma bolsa de doutoramento e no dia a seguir só conseguem pagar um quarto e já é um esforço… isto é tão característico desta geração que dói um bocadinho.
Gostei da cadência da história, de irmos a vários lugares e de percebermos como ela anda meio mundo atrás de uma pessoa que é um palhaço (literalmente e não só) apenas para perceber que, se calhar, nada daquilo foi o que ela achou que tinha sido.
É um livro em que se entra quase a medo, devagar, e quando damos conta estamos tão envolvidos que não conseguimos parar. É um daqueles livros que ficam connosco e sobre os quais queremos falar horas a fio depois de terminarmos.
Ainda não superei este livro (será que algum dia acontecerá?). Que história fabulosa *-*
Já me cruzei com esse livro algures, provavelmente na FNAC, mas nunca li.