queríamos ser a pipoca

Ser adolescente e ler a Pipoca foi um canon event. A Pipoca foi a primeira blogger que muitos de nós, ávidos leitores de blogs e aspirantes a bloggers, lemos. Nunca estudei devidamente o assunto, mas acredito que havia um conjunto de fatores que faziam com que houvesse uma certa proximidade com a Pipoca, algo para lá do sentido de humor. Havia na Pipoca uma proximidade que nenhuma série americana nos podia trazer. Ela era nossa, era portuguesa como nós, vivia em Lisboa, era jornalista e alguns de nós — euzinha — queriam ser jornalistas. As séries podiam mostrar-nos uma série de mulheres independentes e cheias de acontecimentos na vida, mas nenhuma dessas mulheres vivia na capital portuguesa, ganhava mal e parcamente e percebia as nossas referências. Mas a Pipoca percebia.

Sinto que, de alguma forma, toda a gente que começou blogs ali entre 2007-2010 o fez muito influenciado pela Pipoca. De textos simples, quase sempre humorísticos, sobre a vida de uma mulher de 20 e poucos anos a viver a vida maravilhosa do jornalismo e do desemprego em Lisboa, com corações partidos e tantas outras histórias à mistura, A Pipoca Mais Doce tornou-se um dos maiores blogs portugueses da época. Milhares de visitas diárias. Quando começaram a vir publicações mais focadas em moda não pareciam forçadas, era mais uma das coisas da mulher que adorava sapatos. E quando vários textos deram em livro e começaram as parcerias com marcas percebemos — coletivamente — que, afinal, um blogzito podia trazer dinheiro.

Reler A Pipoca Mais Doce em 2023

A meio de outubro apeteceu-me começar uma série nova. Perdi um bocado o hábito das séries e até quero recuperar, mas parece que não há muito que me agrade ou que vá ao encontro do estado de espírito em que estou. Foi então que, um bocadinho forçada pelo TikTok, que não parava de me mostrar vídeos, decidi rever Sex & The City. Estando agora mais próxima da idade de três das protagonistas quando a série começa achei que era uma boa aposta — e foi, mas essa discussão fica para outra ocasião. Enquanto avançava nos episódios a uma velocidade a que já não estava habituada para séries, comecei a pensar na Pipoca, também ela fã de Sex & The City. Surgiu-me a questão: como seria ler aqueles textos iniciais agora, tendo já passado a idade com que ela começou o blog?

Ainda li alguns posts, mas depois lembrei-me de algo ainda mais interessante: tenho os livros dela em casa da minha mãe. E assim passei o primeiro fim-de-semana de novembro a ler dois dos livros da Ana Garcia Martins. O plano era apenas ler A Pipoca Mais Doce, publicado em 2009, mas depois ainda tive tempo de ir ao O Problema Não És Tu, Sou Eu, publicado em 2014.

A Pipoca Mais Doce em livro

O primeiro livro foi o livro que fez com que A Pipoca deixasse de ser anónima e deixasse de ser apenas A Pipoca. Ganhou nome. Era Ana. Okay, Ana é um nome tão português. Tornou-a ainda mais próxima. Este primeiro livro reúne um conjunto de textos publicados no blog entra 2004 e 2008. Não estão por ordem cronológica nem são datados, mas estão divididos por temas.

Nesta seleção de textos há muita coisa: há textos sobre o desemprego, sobre comprar sapatos, sobre corações partidos, sobre corações que deixam de estar partidos. Há textos que continuam a ter muita graça, há textos que mexem mais com o meu coraçãozinho porque agora parecem mais próximos e há textos que hoje lhe valeriam uma série de comentários maldosos a acusá-la de ser má feminista ou algo assim.

Reler estes textos depois de ter passado todas as idades em que ela os escreveu não é canon, mas também é um event. Lia os textos sobre homens e relações e achava curioso o facto de serem temas tão intemporais. Parece que acrescentámos meios de comunicação, mas os homens continuam iguais e nós continuamos a correr para o telemóvel quando ele dá sinal de vida. Mas não foram só estes textos que parecem intemporais. Enquanto lia as crónicas sobre desemprego ou sobre tentar sair de casa dos pais senti-me assoberbada. Estamos em 2023, como é que aquelas palavras, escritas há quase 20 anos, ainda são atuais? Confesso que houve uma certa dorzinha na alma.

No entanto, voltar a estes textos foi bom, aconchegante até. Talvez seja porque se ela passou aquilo tudo até ao fim dos 20 e sobreviveu então pode ser que nós sobrevivamos também (e por nós quero dizer eu), mas realmente foi um releitura que não contava que ainda significasse tanto.

O Problema Não És Tu, Sou Eu

Lembro-me muito bem do lançamento deste livro porque a apresentação na Fnac dos Armazéns do Chiado foi em outubro de 2014 e eu fui fazer uma reportagem para a ESCS Magazine.

Há uma coisa curiosa em seguir o trabalho de pessoas mais velhas do que nós. Um dia temos 19 anos (quase 20) e estamos na apresentação de um livro a passar os olhos pelos temas de que fala e perguntamo-nos se realmente vamos passar aquilo tudo na próxima década e vamos perceber melhor tudo aquilo de que ela fala. No outro dia temos 28 anos (quase 29) e relemos aquelas questões e percebemos que realmente não percebíamos nada do amor aos 19, nem aos 20 ou aos 25, mas pelo menos nunca ouvimos mesmo um o problema não és tu, sou eu.

Este livro, ao contrário do primeiro, não tem textos do blog. Em vez disso, reúne quarenta grandes questões que as mulheres fazem por volta dos 30, sobre solteirice, relações, casamento, filhos, etc. Tal como disse, a Pipoca sempre foi fã de Sex & The City e não só a série é largamente mencionada no livro, mas também é uma grande fonte de inspiração, com muitas perguntas que vemos na série.

A experiência de leitura não é a mesma, claro. Embora tenham passado quase dez anos, ainda há muita coisa ali que não me diz nada e sinto que a Pipoca de 2014 já era muito mais polida e menos ácida do que a de 2009. No entanto, como estava a rever Sex & The City, senti que era um livro que combinava com o estado de espírito geral, ali a ligar com a série que estava a ver, com as coisas que andava a escrever, com as questões que estava a fazer.

Queríamos ser a Pipoca

Acho que aquilo que mais queríamos ter da Pipoca não era a coleção de sapatos nem as histórias das amigas, de Madrid, dos namorados e ex-namorados. Aquilo que mais queríamos era ser a Pipoca, mas não aquela Pipoca. Queríamos ganhar a vida a escrever as nossas histórias, falar da nossa coleção de sapatos mesmo que só tivéssemos sapatilhas, falar dos nossos dates embora agora eles surjam no Tinder, falar das nossas amigas a casar e ter filhos, apesar de só termos uma amiga nessas condições porque mais nenhuma tem condições para isso. Nós queríamos ser a Pipoca e conseguir que as nossas histórias — a nossa escrita — chegassem a tanta gente, fizessem sentido a tanta gente.

Não sei se, hoje, um blog como o dela conseguiria o mesmo impacto. Mas sei que se alguma vez voltar a cruzar-me com a Ana a única coisa que lhe vou dizer é obrigada. Foi ela que me orientou a escrita e o blog em muitos momentos. Nunca cheguei a ser a Pipoca, mas pelo menos tive o privilégio de conhecer A Pipoca, a original, na altura em que precisava de conhecer. Obrigada, Pips.

4 Replies to “queríamos ser a pipoca”

  1. “Canon event” indeed. Saudades desse tempo dos blogs. Sem dúvida que o blog da Pipoca foi (e ainda é) uma grande inspiração para mim. Actualmente já não a acompanho mas será sempre icónica

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