- Quando: 19 a 21 de abril de 2024
- Gatilhos: luto; famílias de merda
Acho que quis ler o segundo livro da Rita assim que a vi apresentar o primeiro. Não sei se ela concordará comigo, mas sinto que ela precisava de começar por As Coisas Que Faltam antes de partir para qualquer outra história que tivesse para contar. Depois de ler este primeiro livro e de a ver apresentá-lo para tanta gente quis logo ler o próximo. Sabia que não seria igual, que traria uma nova versão da Rita e estava desejosa de a conhecer. E eis que chega a nova versão, a versão de Quando os Rios Se Cruzam — que tem uma capa sublime, tão bela que devia estar pendurada no Louvre.
Quando os Rios Se Cruzam traz-nos Leonor e a bela cidade de Turim. No último semestre da licenciatura, Leonor escolhe Turim como cidade de Erasmus e, a tantos quilómetros de Lisboa, tem finalmente oportunidade de se libertar do peso da mãe narcisista e da responsabilidade de tomar conta dos outros. Ir de Erasmus é a sua oportunidade de ser quem quiser e Turim mostra-lhe várias versões de si mesma que ela desconhecia, nem todas positivas ou perfeitas. Agora, dez anos depois, Leonor consegue finalmente contar a história de tudo o que aconteceu em Itália e de como o fogo a marcou para sempre.
Quantas coisas conseguimos fazer caber dentro do silêncio? Quantas vontades, quantas palavras preferimos calar, quantas acusações? O silêncio é, muitas vezes, a melhor maneira de evitar o confronto: como se a ausência de som tornasse o ar rarefeito, pouco natural, incapaz de cumprir o seu propósito. Como se fosse capaz de nos proteger mesmo quando, à primeira vista, parece apenas a expor-nos
Bem, por onde começar? Acho que começo mesmo por Turim. A experiência de Erasmus é algo que não conheço e nunca foi sequer uma possibilidade nos meus planos, mas, se tivesse sido, sei que teria escolhido Itália. A melhor parte para mim é que a Rita nos apresentou Turim de uma forma soberba e conseguiu fazer da cidade a minha personagem preferida. Para mim, a Rita não estava a escrever a sua cidade de Erasmus, mas sim a cidade que também foi casa — e isso é muito bonito de ler. Com uma cidade destas, tão cheia de história e de paisagem, tudo o resto acaba por encaixar ali da melhor maneira, qual gelato de zabajone e crema (vou acreditar na Federica).
Claro que sem a Leonor não tínhamos Turim e esta foi uma daquelas personagens… É uma personagem complexa e perfeita, como somos todos. Umas vezes gostei dela, empatizei com as impressões que ia partilhando da cidade e até senti que, se calhar, ir para uma cidade a 400 km de casa e ir de Erasmus têm muitas semelhanças, senti como minhas muitas das dúvidas e dores de crescimento. Outras vezes tive só vontade de lhe perguntar se tinha mesmo de se procurar em tantas bebidas, se queria mesmo arriscar uma amizade por algo assim, se não podia simplesmente tentar um equilíbrio melhor entre a Nô e a Leo, entre Lisboa e Turim, entre Po e Dora. Mas, sinceramente, não é depois de umas quantas quedas que aprendemos a encontrar o equilíbrio entre as várias versões que habitam em nós?
A Leonor foi uma personagem sobre a qual acabei a pensar muito depois de terminar o livro e acabei por a debater um pouco com a Rita. A minha sensação inicial em relação ao livro foi que a Leonor seria uma daquelas pessoas que pensa demasiado (e relaciono-me com isso) e, por isso, o discurso do livro era muitas vezes repetitivo ou, até, justificativo — algo de que não tinha gostado tanto. Depois, em conversa com a Rita, acabei por perceber algo que me tinha falhado na forma como encarei a história. É suposto a Leonor estar a contar a história em voz alta a alguém que não conhece. O discurso oral é muitas vezes repetitivo, às vezes parece incoerente ou sente-se necessidade de explicar mais para que quem ouve nos compreenda. Perceber isto, mas também analisar alguns aspetos da Leonor em conversa acabou por me dar uma visão mais alargada daquilo que li.
Tinha também muita curiosidade em perceber como é que seria abordada a grande questão da sinopse: somos mais nós quando estamos junto das pessoas que nos conhecem ou quando estamos longe de tudo e podemos ser quem quisermos? Tal como disse senti muitas semelhanças entre o que a Leonor sentiu ao ir de Erasmus e o que eu senti quando fui de Trancoso para Lisboa para a faculdade e, também por isso, mas principalmente pelo caminho que tenho seguido esta questão tem-me ocorrido muito. Ainda há não muito tempo dei por mim a refletir sobre o facto de ter duas casas (Trancoso e o Porto) e de sentir que há partes de mim que só existem num sítio ou no outro e só se encontram em mim.
Tendo isto em conta, talvez seja curioso pensar que acabei por interpretar o título não só na ideia da Leonor de Lisboa e da Leonor de Turim, mas também na Leonor e no Miguel e, a certo ponto, na Leonor e na Daniela. No entanto claro que, no fim, acabei no ponto onde comecei: quem é a Leonor mais verdadeira? A que sai, a que se diverte, a que bebe imenso com amigos ou a responsável, a da família complicada, a que tem um grande peso nos ombros?
A escrita da Rita mantém os seus pormenores, mas noto-a mais adulta, mais madura. Tudo nesta história parece ter sido ainda mais pensado: cada palavra, cada local, nada parece surgir aqui por acaso. A história iluminou-se sempre que a Rita escrevia sobre Itália e criou-me conflitos interiores em muitos momentos — fez-me pensar e repensar. É uma história de descoberta que termina com uma das descobertas mais tristes que podemos fazer ao longo da vida. Para mim, no entanto, termina também com uma certeza: aceitarei de bom grado todas as histórias que a Rita nos quiser contar.
É um livro cheio de camadas e acho que vamos acabar por descobrir mais umas quantas daqui a algum tempo, quando a história amadurecer em nós.
Já tenho vontade de o reler e de voltar a percorrer Turim, mesmo sem ter lá estado *-*