Este ano reaproximei-me da música da Capicua e consegui descobrir uma ligação muito mais próxima com a rapper e escritora portuense. Madrepérola, álbum de 2020, será um dos mais ouvidos do meu ano e Aquário, o primeiro livro, publicado em 2022, tem uma grande possibilidade de ser um dos meus favoritos do ano. Estando agora muito familiarizada com as crónicas da Capicua, Aquário, que reune crónicas e poemas, permitiu-me ir um bocadinho mais além e descobrir os textos que ainda não conhecia e que tanto me disseram.
Já se sabe que tenho um amor especial por crónicas, mas realmente é difícil não o ter quando estou constantemente a cruzar-me com cronistas que conseguem, em poucos parágrafos, brincar com as palavras com tanta simplicidade e engenho. Não importa o tema, a crónica consegue captar a essência de quem a escreve e abre pequenas janelas para aquelas realidades que nos são apresentadas.
A escrita tem a dupla função de ser lúdica e eminentemente confessional. De ser oficio, filigrana, engenho e técnica, para ser vómito, catarse, digestão. Essa perfeita alquimia que transforma merda em ouro, as dores da existência em pequenas vitórias pessoais e estéticas, os grãos de areia em pérolas, como as ostras, e todas essas metáforas que resumem a criação. Essa capacidade de sobreviver apesar da mortalidade, ensaiar a imortalidade, brincar a Deus, ser livre, como tentam os artistas e alguns têm a ilusão de conseguir.
A escrita tem sido isso tudo e um lugar no mundo, um espaço de acolhimento e desafio, um conforto desconfortável. Simultaneamente insuficiente para conter todas as ideias e ambições, e assoberbante precisamente por isso, mas também por todas as folhas em branco a encarar. (Esperemos que de frente.)
Está na altura de dizermos que a Capicua é uma das melhores que temos a trabalhar com palavras em Portugal — nas letras de músicas e nas crónicas. Quase me atrevo a dizer que será uma das melhores em tudo o que decidir escrever. Fale de maternidade, política, feminismo ou música, a Capicua ensina o seu ritmo às palavras, certa de que a escrita é um instrumento que se afina a si próprio.
Aquário é uma bela forma de chegar à Capicua para lá da música, sem que esta deixe de estar presente. Entre diários de quarentena, balões de São João e histórias familiares, acho que fiquei a gostar ainda mais da escrita da Capicua aqui. Sei que a pergunta é ingrata, mas para quando o próximo?
Título original: Aquário
Autora: Capicua
Ano: 2022
Lido entre: 7 e 10 de novembro de 2024