heartburn [nora ephron]

When Harry Met Sally é uma das minhas comédias românticas preferidas e, por isso, há algum tempo que queria ler algo da Nora Ephron, que escreveu o guião do filme. Estava mais inclinada para conhecer a escrita literária da Nora através do I Feel Bad About My Neck, mas apanhei o Heartburn em promoção e não resisti, parcialmente a torcer para encontrar algo tão bom quanto When Harry Met Sally.

Heartburn é uma autoficção e acho que foi precisamente isso que me agarrou ao livro, principalmente quando há uma certa tendência metaliterária em algumas partes da história. Em Heartburn, a narradora é Rachel Samstat, inspirada na própria Nora, uma food writer (escritora de livros de receitas que não são só livros com receitas) casada com um jornalista de política, o Mark, inspirado no Carl Bernstein. Apesar de Rachel ser nova-iorquina, o casal vive em Washington, D.C. por causa da carreira de Mark. Quando o livro começa ambos são pais de Sam e a Rachel está grávida do segundo filho. Tudo parece estar bem nesta família até Rachel descobrir que o marido tem um caso extraconjugal com Thelma Rice, inspirada na Margaret Jay.

Logo na introdução, a Nora Ephron fala precisamente sobre o facto de o livro ser inspirado em algo que aconteceu na realidade e sobre o impacto que isso possa ter tido na sua vida:

Everyone always asks, Was he mad at you for writing the book? and I have to say, Yes, yes, he was. He still is. It is one of the most fascinating things to me about the whole episode: he cheated on me, and then got to behave as if he was the one who had been wronged because I wrote about it! I mean, it’s not as if I wasn’t a writer. It’s not as if I hadn’t often written about myself. I’d even written about him. What did he think was going to happen? That I would take a vow of silence for the first time in my life?

Confesso que, estando isto na introdução, mesmo que o livro não entregasse o que prometia eu já estava satisfeita porque estas reflexões sobre a linha que separa (ou não) a ficção da realidade é algo que me interessa particularmente. De forma mais ou menos dissimulada, acho que é um exercício interessante, embora complexo, quando um autor consegue colocar em ficção ou noutro género literário algo que viveu. Mas também compreendo que isso exige que as pessoas que rodeiam o escritor tenham um à-vontade para se verem retratadas em texto — algo que é bem mais tranquilo quando as palavras são simpáticas do que quando as palavras retratam algo que fizemos de errado ou que foi interpretado como errado pela outra pessoa.

No entanto não é esse também, de certa forma, o papel do escritor? Pegar naquilo que lhe acontece e dar-lhe uma nova vida? Usar a realidade como combustível para a ficção? E não será também incómodo para o escritor pegar em algo horrível e transformá-lo numa história, ainda mais em casos em que todos sabem que aquela história aconteceu na realidade?

Eu sei, não é uma questão tão simples assim. Não é fácil separar a arte do objeto artístico quando somos nós o tema. Também não é fácil perceber que tudo pode ser tema de escrita para um escritor. Parece que quase caímos naquela pergunta clichê que se faz aos humoristas: quais são os limites do humor? Bem, quando são os limites da literatura?

De certa forma, no livro a narradora dá uma resposta parcial a esta questão. Há uma personagem que lhe pergunta por que motivo ela tem de transformar tudo numa história e ela responde que se contar a história tem controlo na versão que conta, a história deixa de doer tanto e consegue seguir em frente. Se calhar é mesmo essa a questão.

Vera said: ‘Why do you feel you have to turn everything into a story?’ So I told her why: Because if I tell the story, I control the version. Because if I tell the story, I can make you laugh, and I would rather have you laugh at me than feel sorry for me. Because if I tell the story, it doesn’t hurt as much. Because if I tell the story, I can get on with it.

De uma forma muito profissional, posso dizer-te que foi a fofoca que me manteve mais investida na história. Aliás, o facto de o relato corresponder a um meio familiar de classe alta, com muitas outras fofocas envolvidas na relação entre as personagens, acaba por dar quase a sensação de que estamos realmente envolvidos naquele meio, a saber qual é a última polémica de D.C. Além da autoficção, o livro tem uma componente meio meta, uma vez que parece construído como se fosse, de facto, um livro de receitas da Rachel Samstat e gostei do facto de haver receitas a completar a narrativa.

Heartburn. That, it seemed to me as I lay in bed, was what I was suffering from. That summed up the whole mess: heartburn. Compound heartburn. Double-digit heartburn. Terminal heartburn.

A escrita da Nora Ephron é pautada por muito humor, no entanto não gostei tanto quanto achei que iria gostar. Não sei se foi uma questão de falta de ligação à história e às personagens, mas houve momentos em que as personagens me aborreciam e a história parecia não ter realmente uma história a contar. Ainda assim, pela quantidade de coisas que tive a dizer neste texto sobre escrita acho que valeu de alguma coisa.

Título original: Heartburn
Autora: Nora Ephron
Ano: 1983
Lido entre: 27 e 30 de dezembro de 2024
Gatilhos: traições

heartburn Nora ephron

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