silêncio no coração dos pássaros lénia Rufino

A expectativa por um segundo livro é muito injusta. Sei que não fazemos por mal (repara que digo isto no plural), mas, se um primeiro livro nos agradou, queremos que o segundo mostre que o primeiro não foi bom por acaso, que mostre uma evolução notória, quer tenha passado um ano ou vinte, que cumpra uma espécie de profecia. Sei que é injusto esperar tanto de um só livro, mas por vezes as expectativas são mais fortes do que a racionalidade e, no caso do segundo livro da Lénia, foi uma luta difícil. Passaram quatro anos desde que ela publicou o primeiro livro, mas apenas um ano e pouco desde que eu o li, pelo que ao saber de Silêncio no Coração dos Pássaros não senti logo que tivesse passado muito tempo, mas continuava a ter alguma curiosidade em perceber como é que a Lénia ultrapassaria estas profecias do segundo livro.

Silêncio no Coração dos Pássaros assenta em três pontos de vista: o de Laura, o de Álvaro e o de Thomas. Laura, uma violinista de renome, decide terminar o casamento de vinte e sete anos com Álvaro e essa decisão faz com que entre numa jornada de autorreflexão, da infância solitária à idade adulta, onde a música é a única certeza. É aqui, na idade adulta, que conhece Álvaro, com quem vive uma história de amor tão pacífica que tem de se questionar sobre a falta de entusiasmo e o excesso de conforto. Se as questões são muitas, a digressão que faz pela Europa com outra orquestra não ajuda a encontrar respostas, mas ajuda a encontrar Thomas, um clarinetista austríaco, mais novo, e uma nova tomada de consciência sobre o momento da vida em que está.

Não éramos muito atreitos a estar em contacto constante, estávamos habituados à distância saborosa que só se consegue numa relação que é um lago calmo e não um tsunâmi, mas a ideia de que lhe acontecesse alguma coisa e eu não pudesse resgatá-la porque escolhera isolar-me numa ilha metafórica era-me estrangeira e muito desconfortável. Ainda assim, foram dias de silêncio porque nem eu nem ela tomáramos a iniciativa de procurar o outro. Imaginei que estivéssemos ambos a lutar com os nossos demónios, cada um à sua maneira, os dois com a mesma receita — distância e reclusão.

Este não é um livro de reviravoltas inesperadas nem de surpresas inesperadas. Silêncio no Coração dos Pássaros é um livro de autodescoberta e de uma dose reforçada de melancolia. Em primeiro lugar, tenho de destacar a construção destas personagens, feita de forma exemplar. Envolvemo-nos nos seus pensamentos, compreendemos as suas ações, as suas motivações e torcemos por todas, mesmo que seja impossível que todas tenham aquilo que pretendem.

Mas, de todas as personagens, tenho de falar de Laura. Posso estar longe dos cinquenta e nunca ter terminado uma relação longuíssima, mas aquela sensação de estar perdida é universal e transparece de tal maneira que nos sentimos perdidos com ela. Embora ela esteja numa verdadeira crise, conseguimos compreendê-la totalmente e não hesitamos por um momento em desejar que ela encontre a pessoa que quer ser, com uma vida que a preencha por completo e não apenas pela metade.

Depois, claro, há a escrita. A escrita da Lénia está muito bonita e afinada nesta história e é isso que nos envolve por completo nesta onda de melancolia. Num livro que é mais de personagens do que de resolução, a escrita salta ainda mais à vista e, aqui, não há dúvidas: vale sempre a pena esperar pela Lénia. Qualquer profecia de segundo livro é facilmente arrasada porque, afinal, não há nada a temer. Silêncio no Coração dos Pássaros é um livro para quem não tem medo de se envolver nas emoções dos outros, para quem não teme a melancolia, para quem sabe que nem sempre os finais bonitos são os felizes ou os óbvios.

Título original: Silêncio no Coração dos Pássaros
Autora: Lénia Rufino
Ano: 2025
Lido entre 2 e 6 de abril de 2025

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