Há uns belos momentos de lusofonia em que sinto que muito mais é o que nos une do que aquilo que nos separa. Com a nomeação de Ainda Estou Aqui para uma série de prémios cinematográficos, incluindo os Óscares, vi tantos portugueses torcer pela Fernanda Torres e pelo filme que só podia ser um dos momentos bonitos em que muito mais é o que nos une. Infelizmente, nem só os momentos bonitos nos unem e, com uma história partilhada, além de tudo o que de bom e de mau deixámos no Brasil, há algo que nos une que não tem qualquer beleza: as ditaduras.
Se já sentia que nos é ensinado pouco sobre a nossa ditadura, então acho que é só justo dizer que a ditadura brasileira consegue facilmente passar ao lado de muitos portugueses. Parece impossível que a perceção de uma ditadura passe ao lado de alguém, mas também já percebemos que o conceito começa a parecer apetecível para muitos, por isso deve mesmo haver algo que não está certo.
Como dizia, sinto que a ditadura brasileira me passou ao lado enquanto estudava — não me lembro de alguma vez a ter abordado em aulas — e à medida que fui ganhando conhecimento geral sobre História fui percebendo que a realidade da ditadura militar no Brasil foi um autêntico poço de mortes e tortura.
Com tantos regimes democráticos ameaçados um pouco por todo o mundo e com um crescimento generalizado de opções extremistas, regimes conservadores e liberdades individuais ameaçadas, era de esperar que Ainda Estou Aqui viesse mexer connosco. No filme, conhecemos a família Paiva e aquilo que Eunice, a matriarca, passou quando o marido, o deputado Rubens Paiva, foi preso por agentes da ditadura, em 1971. Rubens Paiva foi torturado e morto e Eunice deu por si com cinco filhos e a necessidade de se reinventar para sobreviver. No livro, escrito pelo filho do casal, Marcelo, o foco é também a luta de Eunice com a doença de Alzheimer. Este tema acaba por ser o ponto de partida para uma reflexão sobre memória — a da mãe, mas também a do próprio Marcelo sobre os anos antes de o pai ser levado e toda a luta que veio depois: luta pela liberdade, pela verdade, pelo direito ao luto.
Vi Ainda Estou Aqui no cinema e a dureza daquele relato emocionou-me. Rubens Paiva foi torturado fisicamente, mas a família viveu em tortura psicológica durante anos. Uma família que teve de fazer o luto sem conseguir uma despedida.
Ao contrário do que é habitual, sugeria começar-se pelo filme e só depois partir para o livro. O filme cria uma proximidade com a família e, principalmente, com Eunice. Vemos uma mãe fazer o luto pelo marido sem se permitir cair e a prestação da Fernanda Torres dá-nos muito de Eunice. Até a prestação final da Fernanda Montenegro nos consegue dar muito só com um olhar. No livro, Marcelo partilha a sua visão do que viveu e da mãe que conheceu — ou da mãe que interpretou. Não é um relato tão romantizado nem sequer é um relato tão direto daquilo que o filme mostra.
Acima de tudo, acho importante lembrar estas histórias porque, por vezes, parece que nos esquecemos de que elas existiram. Esquecemo-nos do que outros passaram para nós estarmos aqui, damos por garantidas a liberdade ou o privilégio, defendemos que o passado não volta. Mas a verdade é que, se olharmos à nossa volta, percebemos que é cada vez mais necessário lembrar de que foram feitas as ditaduras. Quem prenderam, quem torturaram, quem mataram. Esquecer é muito fácil. É preciso lembrar.
Título original: Ainda Estou Aqui
Autor: Marcelo Rubens Paiva
Ano: 2015 (PT: 2025)
Lido entre 24 e 29 de abril de 2025
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