Enquanto crescia, gostar de ler tornava-me diferente dos outros. Éramos poucos a gostar de ler e não havia ainda o incentivo de se partilhar sugestões e opiniões sobre aquilo que estávamos a ler. Por ser algo que fazíamos sozinhos, ler parecia ser também algo que tinha de se limitar a nós e não podia ser partilhado de nenhuma forma. Quando, ao crescer, percebi que afinal éramos muitos a gostar de ler tive uma das melhores revelações que o mundo nos dá: raramente estamos tão sozinhos naquilo que sentimos quanto imaginamos.
Ao crescer e começar a escrever, descobri também algo que me fascina particularmente e que revela, mais uma vez, que raramente estamos sozinhos no que sentimos: os textos sobre livros, literatura e escrita. Ler o que um escritor tem a dizer sobre a sua relação com os livros e com a escrita é, talvez, aquilo a que hoje chamaríamos propaganda na qual caio facilmente: sei sempre que quero comprar esses livros.
Mais do que esta partilha limitada de quem escreve, hoje em dia há uma facilidade de partilha global que ainda me intriga, apesar dos meses que passei a estudá-la. De repente, ler não se limita a nós e encontramos rapidamente grupos dispostos a ouvir-nos falar sobre o que estamos a ler, o que achamos do que lemos e até sobre o que queremos ler. Ler é cada vez menos um ato solitário e cada vez mais um ato partilhado. Virtual ou presencialmente, juntamo-nos para ler ao mesmo tempo, para discutir o que lemos, para partilhar um gosto que, antes, pensávamos segregar-nos.
Há quem defenda que, à semelhança do amor, a leitura nos afasta da sociedade. Que o Universo desaparece e permanecem leitor e livro, em silêncio, sem nada ao seu redor. […] Quando lemos, não nos alheamos verdadeiramente da sociedade, mergulhamos sim nas possibilidades de uma sociedade. É também um acto de amor.
Descobrirmos que alguém que conhecemos gosta de ler continua a ser uma descoberta boa, mas já não o é por encontrarmos alguém que também é diferente dos outros; é, isso sim, porque encontramos alguém que é igual a nós e com quem sabemos que vamos poder criar uma nova ligação ao ganhar uma série de novos temas de conversa. E quando o assunto é livros sabemos sempre que a conversa vai ser rica. Quando conversamos sobre livros reforçamos o tipo de leitor que somos e apreendemos o que lemos de novas perspetivas. Os diálogos enriquecem sempre as nossas visões do mundo — e dos livros. Será por isso que os procuramos cada vez mais?
Não tanto em diálogo, mas quase em metaliteratura, quando soube que o Afonso Cruz ia editar o segundo volume de O Vício dos Livros preparei-me de imediato para o comprar. Livros sobre livros enriquecem-nos tanto como as conversas sobre livros. Mesmo que não possamos responder de imediato ao escritor, é certo que estamos a responder-lhe de outras formas ao sublinhar frases e ao marcar páginas. Até no ato de fechar o livro e pegar no computador para meter em palavras os nossos próprios pensamentos sobre o que lemos estamos a responder ao escritor. Estamos, também, a tornar a leitura uma arte ativa, a completar aquilo que acabámos de ler.
Acredito que passarmos incólumes perante um livro não é bom sinal. Se aquele livro não nos deixou a pensar em alguma coisa, não nos ensinou qualquer coisa… será que valeu a pena? Não significa que todos os livros nos façam escrever umas centenas de palavras logo de seguida, mas pelo menos que seja um livro que nos faz sentir que até podíamos escrever essas centenas de palavras para explicar o que o livro nos deu.
Ler dá trabalho. Essa exigência torna a leitura uma arte activa, mais próxima da tradução do que da fruição imediata, e, talvez por isso, quando funciona, seja tão poderosa: porque é o leitor quem completa a obra. A leitura é uma arte de co-autoria.
Em O Vício dos Livros II, Afonso Cruz volta a partilhar uma série de textos sobre este prazeroso vício. Entre curiosidades e reflexões, este é um livro que interpela o leitor sabendo à partida algo sobre ele: não é um leitor casual, é alguém que está interessado em admitir que partilha o mesmo vício do autor: o dos livros. Já tinha gostado muito do primeiro volume e gostei igualmente deste. Dá para aprender, para refletir e para sentir de imediato que mergulhámos nas possibilidades.
É certo que a literatura raramente se faz sem referências, mas admito que desde o mestrado me fascino ainda mais perante o conhecimento, mas também perante a constatação (talvez óbvia) de que a literatura (e a escrita) se faz sempre em resposta a algo — a uma referência, a uma inquietação, a um conhecimento. Nota-se isso claramente nos textos que Afonso Cruz escreveu e publicou aqui. Talvez seja isso aquilo de que mais gosto neste livro, a lembrança de que se nos predispusermos a observar vamos acabar por criar e nessa criação vamos começar um novo diálogo com os leitores, que serão os responsáveis por completar aquilo que criámos.
O Vício dos Livros II pode parecer um daqueles livros de mesa de café, com uma capa bonita, mas mais bonito é mesmo o conteúdo e o quanto torcemos para que o Afonso Cruz continue a presentear-nos com as suas visões sobre os livros e tudo aquilo que os rodeia. É de uma generosidade imensa quando um escritor nos permite conhecê-lo assim. Afinal, também os escritores tiveram de se sentir um bocadinho sozinhos antes de descobrirem que existia alguém no mundo desejoso de os lerem.
Título original: O Vício dos Livros II
Autor: Afonso Cruz
Ano: 2025
Lido em 24 de junho de 2025
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