QUANTO DE REAL TEM UMA PERSONAGEM DE FICÇÃO?

construção de personagens
Uma das perguntas que mais me fazem e que acho particularmente interessante é quanto de real tem uma personagem de ficção? Normalmente, tento responder de uma forma mais sintetizada e digo que as personagens têm sempre uma ou outra característica de alguém real, que conheço. É a resposta que mais dou e que, regra geral, é mais honesta. Aliás, podem confirmar isso no Q&A que fiz aqui no blog há uns meses! Mas não é assim tão simples. Afinal, quanto de real há nas personagens que já criei? Para conseguir responder de forma mais completa, tenho de começar pelo início: o meu processo de criação de personagens.
COMO CRIAR UMA BOA PERSONAGEM
O conceito de boa personagem é um bocadinho complicado de definir. Quando os leitores sentem empatia pela personagem, se identificam com características dela ou identificam características de outras pessoas nessa personagem é sinal de que a personagem parece mais real, mais passível de existir no nosso mundo. Se, pelo contrário, a personagem parece demasiado ficcional, demasiado exagerada ou se não é fácil imaginá-la como uma pessoa de carne e osso talvez falte algo à construção da personagem.
Para conseguirem uma boa personagem dêem-lhe personalidade (virtudes, defeitos, pequenas manias!), motivações e objectivos, medos, conflitos internos (também podem dar conflitos externos), voz (expressões que usa, pronúncia, etc.), história (mesmo que não a incluam depois, tentem descrever a vida dela desde que nasceu até ao momento em que aparece naquilo que estão a escrever), consistência (não podem dizer que ela é alérgica a maçã e depois ela comer maçã sem ter uma reacção alérgica, por exemplo) e espaço para crescer e mudar. Parece muita coisa, mas na verdade é algo que certamente já têm pensado de forma inconsciente. Eu gosto de apontar tudo isto (e mais), para ser mais fácil encontrar a informação de que preciso.
A PERSONALIDADE (e algumas características físicas) DA PERSONAGEM
Como é óbvio, normalmente é mais fácil escrever sobre o que conhecemos. É por isso que, muitas vezes, emprestamos características nossas ou de conhecidos nossos às personagens que criamos: porque já conhecemos, já sabemos o que esperar, já sabemos como se comportam. Mas também porque dá sempre aquela vontade de as moldar um bocadinho e torná-las aquilo que queremos que sejam, como se tivéssemos o poder de mudar as pessoas.
A verdade é que pode facilitar muito a vida, mas tem um problema: se a personagem for cópia chapada de alguém que conhecem é possível que esse alguém não ache muita piada quando vir que criaram uma personagem igual ou com semelhanças evidentes. Também pode acontecer como em Gossip Girl: quando o Dan lançou o primeiro livro, baseado nas pessoas que conhecia, deu um pequeno twist a cada uma das personagens, tornando-as algo de que as pessoas também não gostaram. Como dar a volta à situação? Sigam a regra de sempre: uma coisa é inspiração, outra é cópia.

construção de personagens

COMO CRIO AS MINHAS PERSONAGENS
A maioria das personagens que criei recentemente têm todas uma característica de alguém que conheço. Há uma ou outra excepção, mas a maioria funciona assim. Isto aconteceu porque eu comecei a pensar na história há mais de dois anos e os pilares da minha ideia assentavam em algo baseado em algumas pessoas que conheço. Até ter começado a escrever passou muito tempo, mas as características básicas que eu queria dar a algumas personagens mantiveram-se então decidi dar uma característica a cada personagem. Assim, têm vidas paralelas às pessoas em quem me inspirei, mas nunca chegam a tocar-lhes.
De uma forma mais prática isto reflecte-se assim: imaginem que eu conheço uma pessoa que é, de todas as características que tem, é muito competitiva. Ser competitivo é algo comum a muita gente e com essa característica conseguimos facilmente criar a personalidade da nossa personagem e dar-lhe até mais características: se calhar é uma pessoa que odeia trabalhos e desportos de equipa porque prefere competir a trabalhar em conjunto, por isso talvez pratique algo como ténis, judo, badminton, ou uma actividade desportiva que exija competição mas que possa ser feita apenas por uma pessoa. Talvez odeie perder, por isso a frustração de um mau resultado poder ser uma forma muito boa de mostrar (do velho e bom show, don’t tell) esta característica.
Com apenas esta característica, tenho uma personagem baseada em alguém, mas não necessariamente igual a alguém. Eu gosto de fazer este exercício de roubar uma característica e dá-la a uma personagem e criá-la a partir daí. No entanto, há excepções. Há personagens que até podem ter características semelhantes a pessoas que conheço mas que, na realidade, vêm da imaginação e daquilo que a história pede. Recentemente, por exemplo, percebi que tinha de dar uma característica muito específica a uma personagem. Não pela personagem em si, mas porque a história pedia alguém com aquela característica e aquela personagem era a que melhor se adaptava. Isto pode acontecer quando querem mais representatividade, por exemplo: personagens de outro país, de outra religião, de outra cor, com outra orientação sexual, etc.
E há, também, as pessoas que acabam por inspirar mais do que uma personagem ou a quem roubo mais do que uma característica para criar uma personagem. Às vezes é propositado, outras vezes é intencional. Reparei recentemente (ontem) que criei duas personagens completamente distintas e que, para ser sincera, têm características da mesma pessoa. E eu nem tinha notado isso até ontem ver algo da pessoa e pensar olha, é tal e qual a personagem X! E depois analisei aquela pessoa, a quem, inicialmente, só tinha roubado uma característica de forma consciente, e percebi que meti muito dela em várias personagens. É mesmo assim que funciona: uma personagem nunca será tal e qual uma pessoa da nossa vida, mas várias pessoas da nossa vida acabam por fazer uma boa personagem. Com sorte fazem várias boas personagens.
Como é óbvio, há muito sobre criação de personagens que não está aqui. Isto é uma publicação curta e eu ainda estou a aprender muita coisa. No entanto, se tiverem dúvidas podem sempre deixar questões nos comentários, que é mais fácil para eu saber que tipo de problemas têm na vossa escrita. Para me ajudar a criar personagens no rascunho em que estive a trabalhar, decidi criar uma espécie de ficha de personagem. Eu criei-a à mão, porque tenho um caderno dedicado a este rascunho, mas, para vocês, tenho, em versão PDF, uma ficha de personagem muito mais bonita. São quatro páginas, a última das quais com espaço suficiente para acrescentarem informação que não tenham mencionado antes. É só fazerem download, imprimirem, preencherem e já está! Deixei o freebie para o fim como prendinha por terem lido este textão gigante. Se usarem, mostrem-me e marquem-me no Facebook, Twitter, ou Instagram (@asofiaworld nas três):

 

2 Replies to “QUANTO DE REAL TEM UMA PERSONAGEM DE FICÇÃO?”

  1. Este processo de construir uma personagem tem tanto de complexo como de entusiasmante, porque nos obriga a pensar para além da ideia prévia e a arranjar formas de sustentar as suas características! Apesar de não ser um exercício que faça com regularidade, acho-o mesmo interessante 🙂

  2. Gostei muito do artigo! Obrigada pela ficha de personagem 🙂 Concordo com a Andreia, este processo é mesmo muito entusiasmante e desafiante. Ultimamente comecei a fazer testes de personalidade às minhas personagens, só por diversão. É muito engraçado e penso que ajuda depois na construção da história. 🙂

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