O Poder dos Livros

Imaginem viver num mundo onde tentam recolher e lacrar livros.

Agora imaginem que tentam fazer isso porque os livros têm personagens LGBTQ+ ou abordam temáticas LGBTQ+.

Estamos em 2019. Parece absurdo acontecer algo do género, não parece?

Está a acontecer no Brasil.

Para quem está fora do assunto, vou resumir a situação: na quinta-feira, dia 5, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, anunciou que ia recolher uma banda desenhada da Bienal do Livro. O problema da banda desenhada? Um beijo. Sim, um beijo. A BD Vingadores: A Cruzada das Crianças, que penso que em Portugal só encontram em inglês (Avengers: The Children’s Crusade), tem um beijo lá no meio que incomodou o prefeito do Rio de Janeiro. Bem, convém explicar: é um beijo entre duas personagens masculinas. O drama. O horror. A estupidez humana, na verdade.

Crivella não ficou pela ameaça. Na sexta-feira, dia 6, a Secretaria Municipal de Ordem Pública do Rio de Janeiro fez buscas na Bienal (sim, buscas, tipo polícia à procura de provas de um crime) com o intuito de remover aquela banda desenhada. Mas não só. O objectivo era retirar ou lacrar livros com suposto conteúdo pornográfico. O que é que eles consideram como conteúdo pornográfico? Livros com personagens LGBTQ+.

De acordo com o prefeito, este tipo de livros precisa de estar lacrado com plástico preto e indicação de tem conteúdo impróprio. O conteúdo é tão impróprio que a Folha de S. Paulo ontem o colocou na capa.

Folha de São Paulo
Capa do jornal Folha de São Paulo do dia 7 de Setembro de 2019.

Conteúdo impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas

A história não fica por aqui. Perante esta situação, o youtuber Felipe Neto decidiu que tinha de fazer alguma coisa, dar resposta à situação. E fê-lo de uma forma exemplar. Através da sua equipa, comprou todos — repito: TODOS — os exemplares com conteúdo LGBTQ+ que havia no stock das editoras presentes na Bienal. Ao todo foram cerca de 14 mil livros. Ontem durante a manhã todos os livros foram distribuídos gratuitamente, dentro de um saco preto e com um autocolante que dizia: conteúdo impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas.

Bienal Rio de Janeiro 2019
Imagem via @felipeneto

Confesso que já vi e li tanto sobre este tema, mas estou a escrever isto sem acreditar que é possível. O Brasil esteve numa ditadura militar até 1985 e acho que não é segredo para ninguém que tem um grave problema de corrupção. No entanto, o presidente actual foi eleito democraticamente, mesmo quando avisou que queria instaurar a ditadura.

Assusta pensar que ainda há censura, hoje em dia. Assusta pensar que há pessoas que concordam com esta censura, com este preconceito, com esta homofobia. A resposta certa foi a do Felipe Neto, a das editoras e a da organização da Bienal, que mostraram desde logo a posição que defendem, e também dos autores e personalidades brasileiras que lembraram que um livro censurado é apenas o início de algo maior e pior.

Curiosamente, no início da semana passada, apresentámos o tema de Setembro do The Bibliophile Club e escolhemos livros banidos. Não imaginávamos, claro, que íamos ver algo assim acontecer. Têm agora, a hipótese de escolher muitos livros incríveis que não foram banidos, mas quase.

Além de todo o acto de censura, que é repugnável, a homofobia presente neste acto é assustadora. Mas ainda mais assustador é saber que há pessoas que realmente concordam com estes actos.

Um livro é a maior arma de uma sociedade. Leiam-nos. Escrevam-nos.

Depois de tudo isto, tive ainda mais vontade de escrever. O curioso é que senti, em alguns autores brasileiros que acompanhei nas redes sociais, a mesma vontade. A vontade de escrever mais, a vontade de usar as palavras como forma de matar a ignorância. Talvez seja mais fácil para mim falar, porque em Portugal não estamos à beira de ter um livro censurado por ser LGBTQ+.

Ainda assim, acho que este é um bom momento para todos pensarmos e para mostrarmos em que lado estamos: no lado dos ignorantes preconceituosos ou no lado dos que não querem ficar calados. Tendemos a pensar que isto são problemas dos outros, que não têm a ver connosco. Mas quando tentam calar um livro é um problema de todos. Como resistir? Lendo. Muito. Todos os livros que quiserem. Todos os livros que eles acharem que têm conteúdo impróprio.

Quando vos disserem que ler é a maior arma de uma sociedade… acreditem. Se não fosse ninguém se preocupava com livros.

5 Replies to “O Poder dos Livros”

  1. O Bolsonaro quando assumiu poder, ele proprio disse que nao tinha problema em instaurar uma ditadura no dia em que toma-se cargo. E guess what? E o que o Brasil esta a viver atualmente, uma ditadura disfarcada de democracia! Ja existem sites na internet que estao a ser censurados no Brasil. Ele proprio citou Salazar quando estava a concorrer a presidencia. COMO E QUE O POVO VOTOU NELE!!!

  2. Assusta-me perceber que há tantas pessoas com esta mentalidade retrógrada. Porque é de uma desumanidade tremenda e desnecessária :/
    A atitude do Filipe Neto foi genial!

  3. Fiquei perplexa quando li sobre este assunto. Não é normal! Estamos em 2019 e as pessoas deviam ser livres: para falar, escrever, desenhar… tudo e tudo e amar, acima de tudo. A censura assusta-me. A ditadura assusta-me! Por muitos motivos, mas por um em particular: li sobre isso. Não foi preciso viver, apenas ler, para saber que devemos lutar e valorizar a nossa liberdade. Porque sim, os livros e as palavras são uma grande arma.

  4. O mais assustador é que esse prefeito foi eleito, e há certamente quem concorde com a acção que ele tomou…

  5. As palavras são de facto uma arma e a liberdade que temos hoje deve-se aos que resisitiram e disseram não. Podemos não estar no Brasil mas as redes sociais aproximam-nos e dão-nos também a chance de dizer NÃO, de partilhar e de estar envolvidos. O que o Felipe fez foi grandioso e quase me emocionei a ver o vídeo acerca desta temática. Continua a ler e escrever, Sofia! Que eu vou continuar também!

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