Quando Junho chegava Olívia já sabia o que esperar. Em todos os Verões, os pais obrigavam-na a passar dois meses na cidade mais aborrecida de sempre. Chamar-lhe cidade era, aliás, algo que achava um exagero. Toda a gente ali parecia conhecer-se. Em que cidade digna de ser cidade é que isso acontece? Claro que não valia a pena discutir com os pais sobre o assunto. Os Verões eram passados na Cidade-Mais-Aborrecida e não havia volta a dar.
Quando Junho chegava, Olívia começava a preparar as malas: uma com roupas, biquinis e fatos-de-banho e outra com livros. O Verão era a altura do ano em que mais lia e isso era a única vantagem que via em estar na Cidade-Mais-Aborrecida.
Tal como sempre acontecia, ficava em casa dos tios — que tinha sido a casa dos avós — e podia finalmente rever o primo, Tomás. Olívia e Tomás nasceram no mesmo dia e, por isso, sempre se trataram como irmãos. Até aos dez anos viveram sempre a uns metros um do outro. Depois ele e os tios mudaram-se para a Cidade-Mais-Aborrecida. Ele habituou-se facilmente à vida da Cidade-Mais-Aborrecida e fez amigos. Amigos que, no Verão, adoptavam Olívia como parte do grupo e tentavam dar vida a uma cidade onde pouco — nada — acontecia.
Olívia e Tomás tinham completado dezassete anos há poucas semanas quando Olívia chegou à Cidade-Mais-Aborrecida para mais um Verão. O grupo de amigos do Tomás — e dela, no Verão — tinha duas surpresas reservadas.
Os meus tios perguntaram-lhe se estava cansada da viagem, mas ela só estava cansada de esperar pelo Verão. Vestiu um fato de banho e uns calções e Tomás, entusiasmado, levou-a de mota para casa de um dos amigos. Era uma casa onde nunca estivera. Grande, certamente maior do que todas as casas que conhecia. Não chegou a saber como era por dentro porque Tomás a chamou para dar a volta e foram para o jardim das traseiras, onde havia uma piscina e onde os amigos os esperavam. Assim que os viram começaram a cantar “Parabéns a Você”. Olívia riu e abraçou toda a gente. Quem me dera levá-los daqui sempre que vou embora, pensou.
A segunda surpresa chegou enquanto a Maria e a Cláudia lhe mostravam o bolo que tinham feito para a ocasião.
— Não é muita coisa, mas foi o que conseguimos. — explicou Maria. — O Tomás e o João ajudaram a escolher a comida e o Bruno é que montou tudo, já que é a casa dele.
Olívia ia responder. Queria dizer que não fazia ideia de que o Bruno vivia num casarão, mas alguém falou.
— Não me digam que começaram sem mim! — disse a voz masculina.
As três raparigas olharam para o outro lado da piscina. Olívia não conhecia aquele rapaz, mas parecia bem mais velho do que o resto do grupo. Já tinha um corpo mais musculado do que os outros rapazes e era também mais alto.
— Quem é aquele? — perguntou.
A Maria e a Cláudia olharam uma para a outra e sorriram.
— É o Gabriel. — disse a Cláudia. — Mudou-se para cá em Setembro.
— E é solteiro. — completou Maria, com um sorriso, que Olívia decidiu ignorar porque Tomás e o tal Gabriel se aproximavam delas.
— Esta é a minha prima Olívia. — disse Tomás.
Gabriel sorriu e Olívia teve de se esforçar para manter o foco na conversa.
— A famosa Olívia! — comentou Gabriel.
— Famosa? — perguntou ela.
— Eles fartam-se de falar sobre ti. — explicou-lhe o rapaz.
Olívia não sabia o que responder, mas não teve tempo de se preocupar com a falta de palavras porque Gabriel parecia ter várias para lhe dirigir. Perguntou-lhe sobre a cidade em que vivia e a escola, sobre a Cidade-Mais-Aborrecida e sobre Tomás. Em poucos minutos, Olívia resumiu a sua vida, sem saber como se comportar perante a curiosidade de alguém que acabara de conhecer.
Gabriel parecia bem mais interessante do que ela, mas o resto do grupo exigia atenção e Olívia não pôde verificar logo se ele era o que parecia. Durante o resto da tarde conversou com Cláudia e Maria sobre as aulas e sobre namoros. Maria tinha namorado uns meses com uma rapariga, mas a relação já tinha acabado. Olívia também queria ter histórias para contar. Parecia que as vidas amorosas na Cidade-Mais-Aborrecida não correspondiam ao resto da vida ali.
De vez em quando os rapazes interrompiam a conversa para tentar convencer alguma das raparigas a jogar futebol. Elas recusavam sempre. Só mais tarde, depois de um concurso de saltos para a piscina, Olívia conseguiu ficar novamente sozinha com Gabriel.
— Como é que começaste a sair com o grupo? — perguntou a rapariga.
— Nas primeiras aulas de Educação Física o professor juntou-me ao Bruno e ao teu primo. — disse Gabriel, encolhendo os ombros.
— E por que motivo te mudaste para cá? — perguntou Olívia, desejosa de confirmar se aquele rapaz era tão cativante quanto parecia.
— O meu pai morreu e a minha mãe quis vir para a terra dela.
Aquelas palavras saíram da boca de Gabriel com uma indiferença tão notável que Olívia não conseguiu esconder a surpresa.
— Não é nada especial… — retorquiu Gabriel, perante a reacção da rapariga.
Mas para Olívia era algo especial. Nas semanas que se seguiram, sempre que Gabriel estava com o grupo, ela observava-o discretamente em busca de algo que a ajudasse a decifrar aquele rapaz. Por vezes apanhava-o a olhar para raparigas, de alto a baixo, e parecia-lhe um rapaz normal. Noutras vezes parecia-lhe que ele ficava muito calado e pensativo, como se estivesse noutro lugar. Não era fácil compreendê-lo.
Quando estava prestes a desistir, Tomás convenceu-a de que era uma boa ideia o grupo ir, sem adultos, para a casa dos avós de Maria. A casa ia estar vazia durante umas semanas e Maria queria que todos fossem lá passar um fim-de-semana. Os tios de Olívia ainda hesitaram, mas confiavam tanto neles que aceitaram e o grupo partiu, de autocarro, para lá da Serra da Estrela.
Apesar de quererem mostrar o quanto eram responsáveis, abasteceram a casa de algumas bebidas e os rapazes arranjaram tabaco e erva. Olívia rejeitou. Ao contrário deles, já tinha experimentado e não pretendia repetir a proeza.
Chegaram com planos para um fim-de-semana prolongado. Na primeira noite ocuparam-se a contar histórias da escola. Olívia tinha as melhores, claro, mas surpreendeu-se ao saber que a vida na escola da Cidade-Mais-Aborrecida era bastante agitada e até invejou os amigos. Queria viver aquelas histórias.
Na noite seguinte, o grupo decidiu ir conhecer a vida nocturna da vila. Havia três bares. Começaram pelo mais calmo e foram seguindo até ao último, onde estava a acontecer uma festa cheia de pessoas da idade deles. Havia tanta gente que acabaram por se misturar no meio da confusão. Perto das duas das manhã, Olívia encontrou Gabriel sozinho no bar.
— Sabes dos outros? — perguntou-lhe.
— Não. Queres ir embora? — perguntou Gabriel, de volta.
Olívia aceitou. A oportunidade de desvendar Gabriel tinha chegado.
Primeiro caminharam em silêncio, com Olívia a tentar compreender a obsessão em analisar Gabriel. Depois, ele quebrou o gelo.
— Não gosto de sair à noite… — confessou.
Aquela declaração apanhou Olívia desprevenida. Como é que ele podia dizer que não gostava de sair à noite se aquilo de que ele mais falava era das coisas que aconteciam quando saía? Qual das partes seria mentira?
Com um fraco sentido de orientação, Olívia seguiu Gabriel pelas ruas daquele lugar, esperando que ele falasse. Depois de vários minutos em silêncio, Olívia não aguentou mais e partilhou aquilo que lhe enchia o pensamento.
— Não consigo compreender-te. — disse, quase desesperada.
A expressão de Olívia fez Gabriel rir, o que a deixou exasperada.
— Não, não tem piada! Estou a tentar decifrar-te e não consigo! Não te percebo!
— Já pensaste que não temos de perceber tudo o que conhecemos? — respondeu-lhe Gabriel.
Olívia resmungou algo baixinho. Para ela, só se conhecia algo quando se compreendia. Ao vê-la chateada, Gabriel riu novamente. Quando estavam a chegar a casa dos avós de Maria, decidiu falar.
— Ok, fazemos assim: tens direito a fazer-me cinco perguntas. — disse.
— Só cinco? — perguntou Olívia.
— Só cinco. — confirmou Gabriel.
— Está bem. Preciso só de uns minutos para decidir as perguntas que vou fazer.
— Demora o tempo que quiseres.Vou ficar nas traseiras à espera.
Quando Olívia foi ao encontro de Gabriel, ele estava sentado no chão do alpendre, encostado à parede. Sentou-se ao lado dele.
— Já tenho as perguntas. — informou Olívia.
— Podes começar, então.
Olívia respirou fundo e depois avançou.
— Dizes que não gostas de sair à noite, mas sais muito à noite. Podes explicar-me qual das partes é a que realmente te define?
— Não gosto de sair à noite, mas preciso de sair à noite. — respondeu Gabriel.
— Não compreendo.
— É uma distracção do mundo. Às vezes preciso de me distrair. Se todas as noites fossem como esta, por exemplo, era fácil pensar noutras coisas. Mas muitas noites são tão vazias que se enchem de perguntas e pensamentos que não quero ter.
Olívia observou-o com atenção. Tinha um número limite de perguntas que podia fazer e, naquele momento, não sabia por quais optar. Escolheu a que lhe parecia mais segura.
— Disseste que o teu pai morreu. Morreu de quê?
Gabriel olhou-a e depois desviou o olhar para um ponto tão longínquo que Olívia sabia ser-lhe invisível. Passaram largos minutos antes de Gabriel decidir responder.
— O meu pai… — começou, com a voz trémula. Tinha consciência de que Olívia o olhava, mas não tinha coragem de olhar para ela. — Ele morreu de… suicídio.
Olívia sentia-se gelada.
— Desculpa, eu… eu não devia ter perguntado… é óbvio que…
— Não faz mal. — disse Gabriel, ainda pouco seguro daquilo que estava a dizer. — É só… nunca me tinham perguntado de que é que tinha morrido.
Olívia assentiu.
— Posso fazer outra pergunta?
— Ainda podes fazer três.
— Só quero fazer mais uma agora. — disse. — Quando dizes que precisas de te distrair de certos pensamentos, esses pensamentos são sobre como o teu pai morreu?
— Também. Mas não só. O meu pai estava profundamente deprimido, mas sempre foi um pai exemplar. Era o meu melhor amigo. Nós, eu e a minha mãe, sabíamos que isto ia acontecer, que o nosso tempo era limitado, mas sempre soubemos que o tempo limitado não significava que ele não nos amasse. Portanto claro que penso no meu pai e tenho saudades dele. E não consigo evitar pensar se podia ter feito mais, se devia ter feito mais e se, se um dia passar por isso, vou ter alguém que me apoie incondicionalmente.
— Vais ter. Eu vou estar sempre disponível para te apoiar e para te ajudar. Não importa o que acontece.
Gabriel teve o impulso de a beijar, mas, em vez disso, segurou-lhe apenas a mão.
— Tens a certeza? — perguntou-lhe.
— Não faço promessas que não planeio cumprir.
Cinquenta Anos Depois
Olívia abriu os olhos, esforçando-se para lutar contra as lágrimas. Odiava sentir-se observada daquela forma. Procurou o filho, Francisco, que se precipitava para junto dela. Francisco agarrou-lhe o braço e sussurrou:
— Está tudo bem, mãe. — assegurou-lhe, enquanto a ajudava a descer as pequenas escadas. — O discurso foi maravilhoso.
Madalena, a filha, juntou-se rapidamente a eles.
— Foi a história mais bonita que já ouvi, mãe. — disse-lhe, com um sorriso ténue.
— Eu sei… — murmurou Olívia, retribuindo o sorriso tímido. — Não te esqueças de que é para incluir aquilo na epígrafe. — lembrou.
Madalena assentiu. Semanas depois, quando se dirigiu, com o irmão, ao local onde seria feita a campa do pai repetiu o pedido que a mãe e o pai lhe haviam feito muito tempo antes:
— Queremos que diga “promessa cumprida”, em vez do habitual “eterna saudade blá blá blá”. É muito importante que assim seja. — disse. O homem que os atendia assentiu, apontando o pedido.
— Pode lembrar-me o nome do seu pai, por favor?
— Gabriel Sousa Fonseca.
— Se tudo correr como previsto, dentro de dez dias iremos colocar tudo no local indicado.
Madalena e Francisco agradeceram.
— Sabias a história completa de como a mãe e o pai se tinham conhecido? — perguntou Francisco a Madalena.
— Não. Pelos vistos, era mais uma promessa deles. Eu e tu só podíamos saber os pormenores quando um deles morresse.
— Eles e a mania de cumprir promessas.
Todos os contos do projecto Conta-me Histórias seguem o Antigo Acordo Ortográfico. Descobre mais sobre o projecto aqui.