Este texto está inserido no Projecto 642.
O tema é: escreve uma história baseada no título da tua música preferida.
Antes de avançar para a história, quero falar contigo sobre a escolha que fiz. Quando decidi este tema, soube logo que a música que ia considerar era a Let it Be, dos The Beatles. Esta música foi escrita por sir Paul McCartney numa altura em que a relação entre membros da banda já não estava boa e, na letra, McCartney diz mother Mary comes to me, speaking words of wisdom… let it be. Estes versos falam sobre um sonho que ele teve, em que a mãe, que morrera há algum tempo, lhe dizia precisamente let it be.
Optei por não me distanciar da realidade da letra deste tema e, por isso, escrevi uma história curta.
Aquele era o pior dia da sua vida. Tinha a certeza de que não conseguiria sair do buraco onde acabara de cair. Não literalmente, claro, mas quase.
O longo dia começara a dar para o torto ainda de madrugada. Depois de horas a discutir na noite anterior, a mulher saíra de casa e regressara já passava das duas da manhã. Ele ainda a esperava. Ela sentou-se calmamente na cama e, sem o olhar, murmurou: quero divorciar-me. Só isso. Nenhum deles falou, nenhum deles pregou olho.
De manhã, chegou ao trabalho para receber a notícia de que o projecto em que trabalhava dia e noite nos últimos seis meses tinha sido chumbado e que não iria ser aproveitado. Antes da hora de almoço o chefe chamou-o ao gabinete. Ele preparou-se para um sermão, mas o que ouviu veio, novamente, de uma voz calma: vamos ter de te despedir. Com o fracasso deste projecto não é possível manter-te. Tira o resto do dia e amanhã conversamos sobre as burocracias.
Ele assim fez. Desligou o computador, pegou nas coisas e saiu, sem reacção, do edifício. Conduzia distraído e sem rumo quando foi abalroado por um camião. Não viu o sinal que o obrigava a parar. O carro ficou em mau estado, mas ele ainda ficou pior. Entre primeiros-socorros e a ida para o hospital não se lembrava de grande coisa, só pensava na mãe. A mãe dizia-lhe sempre, com um positivismo invejável: vai correr tudo bem. Mesmo quando estava a correr tudo mal. Mesmo quando o pai morreu. Mesmo quando a mulher dele teve três abortos. Mesmo quando diagnosticaram um cancro raro à mãe e ela soube que não viveria muito mais.
Se a mãe estivesse ali dir-lhe-ia vai correr tudo bem, deixa estar. E ele só pensava nela, em como queria acreditar que ia correr tudo bem mesmo quando a dor física que sentia parecia estar a matá-lo. Ouvia pessoas falar com ele, mas não sabia quem eram ou se estava a responder-lhes. Ouviu uma voz dizer-lhe: vamos tratar de si agora e ele sentiu que podia fechar os olhos. Foi assim que ouviu a mãe dizer-lhe vai ficar tudo bem, deixar estar. E ele soube que não precisava de se preocupar mais.
Lê este e outros textos do Projecto 642.
Outros participantes: Afar | Andreia Moita | As Gavetas da Minha Casa Encantada | By Carolina | Diogo Simões
Há alturas em que parece que uma desgraça nunca vem só e isso atormenta-nos de formas inexplicáveis. Depois, por outro lado, agarramo-nos sempre a certas palavras de conforto, como se nos guiassem.
Sinto que esta poderia, de facto, ser a história de alguém próximo!
Adoro a música que escolheste *-*