= escrito em Abril de 2014 =
Era um domingo como todos os outros. A manhã passada na cama durante a hora da missa semanal e o pequeno-almoço tardio, de ovos estrelados e um bife, porque gosta de se sentir estrangeiro. Depois do pequeno-almoço diverte-se a procrastinar. Abre e fecha armários enquanto observa o que cada um contém sem nunca se decidir a usar algo. Na televisão já começaram os programas que se tornaram habituais nas tardes de domingo. Vendem um prémio monetário – se fosse dado ninguém precisava de telefonar para o número que repetem a cada três minutos, como se o tema do programa fosse o número e o resto fosse para encher chouriços.
Começa a ficar impaciente, com vontade de atacar o frigorífico e de o esvaziar. Talvez chocolate com recheio de licor ajude. Em três quartos de hora já não existe chocolate na caixa. Talvez seja uma boa altura para dar uso à cara bicicleta de ginásio cheia do pó da garagem. Senta-se no enorme sofá de couro que ocupa mais de metade da pequena sala. Está completamente vidrado no ecrã negro. Programa interessante. Fica fã. Vai vê-lo mais vezes.
Talvez devesse arranjar um cão, sair para o passear e ensinar-lhe truques para que ele faça coisas engraçadas que as raparigas gostam de ver. Assim arranjava uma namorada. Levanta-se e fecha todas as janelas e persianas.
Vai para o quarto. É lá que está Diogo, que é o seu melhor amigo e a pessoa com quem mais fala. Pensando bem, é a única pessoa com quem fala de livre vontade. Gosta de Diogo. É muito parecido consigo, por vezes parece-lhe que são o mesmo.
— Diogo, estou a dar em doido! — diz, enquanto fecha a porta atrás de si. — Esta casa sufoca-me e não quero sair dela.
— Devias abrir as janelas e olhar para a rua. Depois ganhavas vontade de sair e saías. Nem que fosse por cinco minutos! — Diogo era sempre directo e tinha as respostas todas prontas, como se soubesse previamente o tema das conversas que iria ter. Não que existam bruxas mas ele podia mesmo ter capacidades psíquicas paranormais.
— Tu não tens moral para me dizer isso. — protesta. — Nunca sais deste quarto!
— Não saio ou és tu quem não me vê sair? — lá estava Diogo a confundi-lo, tal como acontecia em todas as conversas. Diogo não só sabia o conteúdo das conversas como sabia como dar a volta a um tema com uma pinta enorme! Talvez fossem do mesmo curso. A capacidade de argumentação tinha de vir do mesmo sítio.
— Mas, Diogo, talvez pudéssemos sair os dois. Podíamos ir beber uma bica. Ou tomar uma imperial e comer caracóis enquanto víamos um jogo da segunda liga inglesa. Estás a ver? Vamos lá os dois!
— Tens de sair sozinho primeiro. Não sei por que carga de água tens medo de sair à rua!
— Não é medo! — protesta novamente. — Vou arranjar um cão.
— Tens razão. Não é medo: é paranóia. — Diogo ri. — Vais? Claro que vais! Também ias trabalhar como advogado criminal e nem o mestrado quiseste terminar. — Diogo sente-se triunfante. Ele encolhe os ombros, como se tivesse sido derrotado.
Durante quatro minutos e trinta e sete segundos ficam em silêncio. Sente-se tonto e senta-se na cama, ao lado de Diogo. Pensa em como gostava de ter dezoito anos outra vez e voltar a Loret Del Mar, Benidorm ou uma outra cidade espanhola. Festas todo o dia, festas toda a noite. Manter-se ébrio por vários dias seguidos. Ficar quase surdo por causa do volume do som das músicas passadas nas discotecas. No final das férias ficaria por lá, algures, meio despido numa praia. Porque a vida é melhor para ele quando ele não tem de pensar em nada sério, só em festas, álcool e raparigas. Montes de raparigas. Já não tem idade para isso.
Há uns anos, a meio do curso de Direito, pensou em escrever um diário. Comprou um caderno e uma caneta de propósito para esse objectivo. O caderno ainda hoje está em branco. A caneta secou, sem uso. Pensa que escrever deprime as pessoas. Quem escreve é doente, deprimido, pensa demasiado. Ah! Talvez devesse escrever! Ficar mais deprimido e depressivo do que aquilo que já é parece impossível. Pensando melhor, mais logo vai queimar o caderno em branco. Se não o preenche então não o merece.
Diogo suspira a seu lado, como se ouvisse os seus pensamentos e usasse os suspiros como forma de reprovação. Conhece Diogo desde que conheceu a heroína. Devia ter uns quinze ou dezasseis anos. Nunca experimentou drogas e isso tornou-o mais saudável e mais fechado em si. Diogo é quem o salva de se fechar totalmente. Se não fosse ele, talvez já tivesse atacado uma qualquer substância ilícita.
— Diogo, devíamos fumar um charro juntos. Acho que o vizinho de baixo ainda vende ervas. — as palavras saem-lhe sempre antes de pensar.
— Tu não sabes fazer um charro.
Era verdade. Raios, Diogo! Ambos suspiram.
— Vou mesmo sair de casa. Vou andar de comboio. Sabes há quanto tempo não ando de comboio?
— Três anos, cinco meses e dezoito dias. — ele acena a cabeça afirmativamente. O Diogo sabe demasiado sobre ele. O melhor é sair de casa.
Durante algum tempo vagueia sem destino e sem reconhecer edifícios e locais. Quando dá por si já está na estação de comboios. Nunca o poderia admitir fechado em casa mas ele sabe que Diogo não existe. No entanto não quer abdicar da companhia imaginada. A solidão é assustadora e não toma os anti-depressivos há demasiado tempo.
Uma voz feminina anuncia a chegada de um comboio à linha número cinco. Ele aproxima-se da linha amarela de segurança. Olha para o lado direito e vê, ao longe, a forma do comboio. À medida que este se aproxima, o som intensifica-se. O comboio está cada vez mais próximo e é então que alguém grita. Parece horrorizado.
— Não!
Todas as atenções são desviadas para o lado esquerdo, o lado final da plataforma. Um homem de cabelo já acinzentado agarra uma mulher, ainda jovem, pelo braço. Ela parece bastante alterada e não pára de repetir a palavra “não”. Tudo acontece demasiado depressa. O comboio pára bruscamente e todos ali perto conseguem ver o porquê do horror da mulher que o outro homem agarra. Ele dá um passo atrás.
— Valha-me Deus! — grita uma senhora de idade, atrás dele. Provavelmente também já conseguiu ver o que aconteceu e que tanta agitação está a provocar na estação de comboios.
Toda a plataforma enche em poucos minutos. Ele olha à volta e tenta sair. É recebido com encontrões. Mais afastada está a mulher que deu o alerta de toda a situação. Está sozinha. Aproxima-se dela.
— A senhora sente-se bem? — pergunta, devagarinho.
— Não se preocupe. — diz, sem desviar o olhar do comboio, ainda parado.
— Reparou que era só uma gaivota?
A mulher olha para ele. Ri-se. Parece não o perceber. Fica confuso.
— Disse algo de errado? — pergunta.
— Não era só uma gaivota, moço! — nota-se a indignação da mulher. — Se fosse uma pessoa já lhe importava? E dez? E cem? Você, como bom ser humano que é, está pouco preocupado com os animais, não é? Para quê preocupar-se com uma gaivota quando pode preocupar-se com os golos do Benfica?
Ele ri numa gargalhada sonora.
— Quero lá saber do Benf… — não termina a frase. Olha para a mulher, que está muito séria, sem um vestígio de sorriso.
— Como é que se chama? — pergunta ela.
— Diogo.
— Ora, muito bem, Diogo. Sabia que há cada vez mais dados que mostram que as alterações climáticas têm também levado à morte de muitas espécies animais?
— Sim, sabia. Vejo aqueles programas de animais com frequência.
— E não se preocupa com a morte das gaivotas? Se morrerem muitas, demasiadas, isso vai ser muito prejudicial para a Natureza!
— Eu sei disso e a senhora, pelos vistos, também. Mas foi só uma gaivota. E a gaivota é que se mandou para a linha férrea. Tenha lá calma. Trabalha no campo ambiental?
— Eu? No ambiente? Não! — ele olha-a. — Trabalho numa linha de ajuda.
— Ajuda a quê?
— Combate ao suicídio.
Definitivamente: há pessoas piores do que ele. Muito piores.
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