= escrito em Março de 2014 =
Leva a mão ao bolso do casaco e retira um maço de tabaco. São os seus cigarros preferidos. Abre o maço, retira um cigarro e o isqueiro azul de que tanto gosta – e que um dia, numas férias de Verão, rapinou ao avô. Pára para acender o cigarro e arrumar o maço e o isqueiro no bolso mas depressa recupera o ritmo perdido.
Vai descendo a Rua Augusta com o passo acelerado. Não sabe por que motivo tem pressa mas mantém o ritmo acelerado, como se tivesse de apanhar um comboio. A única presença que não acelera é a do tabaco. O tabaco tem de ser bem aproveitado. Como se não houvesse mais tempo para aproveitar na sua companhia.
Fuma há uns três anos mas nunca contou aos pais. Eles talvez saibam: afinal, os pais sabem sempre muito mais do que aquilo que nós, na nossa falsa ingenuidade, pensamos.
Não sabe quando nem por que razão começou a fumar. Também nunca perdeu muito do seu tempo a arranjar explicações para o seu vício. Talvez tenha sido depois daquele jogo de “Verdade ou Consequência”, naquele intercâmbio que fez no estrangeiro. Talvez tenha sido depois daquela festa, algures no Verão, que durou até de manhã. Talvez tenha sido depois de se ter desiludido consigo ao obter um mau resultado num teste. Ou talvez não tenha sido em nenhuma dessas vezes. Não sabe ao certo.
Também nunca perdeu tempo a pensar no porquê de continuar a fumar. O cigarro está para ele como os torrões de açúcar a mais estão para os chás que a mãe bebe todas as noites antes de se deitar: podem não fazer falta mas dão um sabor melhor, combinam plenamente. E mesmo que faça mal segue sempre o lema da avó: bom ou mau? Que importa? Devemos fazer aquilo de que gostamos.
Há dias, no fim de um dia de aulas muito cansativo, fumou três cigarros de seguida. A namorada chateou-se com ele e ameaçou terminar o namoro naquele exacto segundo – mesmo sabendo que não o conseguiria fazer. Ele encolheu os ombros (como faz sempre que a mãe lhe diz que não devia sair à noite até tão tarde em tempo de aulas) e sorriu-lhe. Ela também não sabe o porquê de ele continuar a fumar.
Chega ao fim da Rua Augusta ainda antes de chegar ao fim do cigarro. Mal se apercebeu dos edifícios e nem se lembrou de espreitar o Museu do Design e da Moda, de que tanto gosta. Está na Praça do Comércio mas não se lembra de aproveitar a vista para o rio Tejo e para a Margem Sul enquanto espera pelo transporte. No fundo quase que nem se importa com a espera que tem de fazer.
Fumar tem destas coisas: por momentos esquece o mundo à sua volta. Esquece que tem um trabalho para o dia seguinte e que ainda não o terminou. Esquece as responsabilidades e o facto de o pai estar hospitalizado com um grave problema de saúde.
Naqueles minutos só existe ele e o cigarro. E não precisa de mais. Talvez fume para esquecer. Talvez fume para se lembrar de como é bom esquecer. Ele nem sempre se recorda mas, sempre que está a terminar um cigarro, ele sabe por que é que fuma: gosta do cheiro, gosta da tranquilidade ilusória que cada um dos cigarros lhe transmite. Pode ser uma tranquilidade passageira, fugaz, mas é a tranquilidade que acaba por o ajudar a enfrentar o resto do dia.
Um dia, quando tinha cinco anos e achava que o melhor do mundo era o Pai Natal e que iria ser astronauta quando crescesse, o avô levou-o a um café. Sentou-o na esplanada e ofereceu-lhe um gelado de chocolate – o seu preferido – para que ele estivesse entretido enquanto o avô conversava com um amigo dos tempos da guerra, segundo o avô lhe dissera. O amigo do avô fumava e o avô não parecia importar-se. Só lhe pedia que não fumasse para cima do neto.
Naquela altura, todos lhe diziam que nunca fumasse porque fazia mal e era feio. E ele, uma simples criança, concordava e prometia que nunca iria tocar num cigarro porque não queria fazer coisas feias.
Mas que importa isso? A espera ainda é longa. Acende outro cigarro enquanto apaga a solidão.
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