= conto originalmente escrito em Outubro de 2015, para o projecto “CPR – Grupo de Escrita Criativa”,
revisto em Fevereiro de 2020 =
Há algo nas ruas desta cidade que me faz agarrar a mala como se nela guardasse o maior tesouro da vida humana. Olho várias vezes para trás, recuso-me a usar fones e até frequento aulas de defesa pessoal. Nunca me aconteceu nada… mas isso não quer dizer que, um dia, não aconteça.
As ruas não são assim tão mal iluminadas. O problema não é a iluminação das ruas. O problema é… nem eu sei. Eu não acreditava nestas coisas… até há uns dois meses. O jornal onde a minha melhor amiga trabalha começou a publicar peças sobre mortes na cidade. Todas elas em condições estranhas, durante a noite. De resto, não há pontos convergentes entre as mortes: tanto são homens como mulheres; as idades variam entre os 15 e os 60 e tal; solteiros, casados, divorciados… Enfim, não há nada que ligue estas mortes… excepto o facto de não haver suspeitos nem pistas encontradas. As pessoas aparecem mortas em pontos aleatórios da cidade. Não se sabe o que lhes aconteceu.
Durante as primeiras notícias, confesso que pensei que era exagero da parte do jornal. Uma forma de vender mais ou algo do género. Depois a minha melhor amiga ligou-me, assustada. Dizia-me que aquelas mortes eram muito estranhas, que a polícia não estava a fazer caso e que estava assustada. A minha melhor amiga nunca fica assustada. Com nada. Esteve em cenários de guerra e nem por um momento teve medo. Nem quando bombardearam o hotel ao lado do local onde ela estava.
Pelo que ela soube no jornal, o caso é sério. Tão sério que ninguém lá está autorizado a andar sozinho fora do edifício. O jornalista que tem feito as reportagens anda sempre com duas pessoas — uma delas praticante de boxe.
Claro que fiquei preocupada. Sou enfermeira, trabalho por turnos e, por isso, ando na rua em horários diferentes e não posso andar sempre com alguém a acompanhar-me. Tentei informar-me na esquadra mais próxima, mas todos dizem para não me preocupar. “São invenções exageradas das notícias”, dizem-me. Mas eu sei que não são. Agarro a mala com mais força.
É então que ouço algumas folhas serem pisadas. Paro de andar e olho para trás. Não vejo uma única pessoa. Talvez tenha sido eu. Mas não há folhas caídas no sítio onde estou.
Agarro na mala e apresso o passo. Juro que ouço passos atrás de mim mas, sempre que olho, não vejo nem um cão. Mas está alguém atrás de mim. Eu sei. Eu sinto-o. Agora caminho a um passo quase de corrida. Só não corro porque o meu joelho não permite. Maldita queda que dei hoje. Se sinalizassem os lugares molhados eu não teria caído e agora conseguiria correr.
Ouço os passos atrás de mim. Estão cada vez mais apressados, tal como os meus. Estou quase a correr. Tenho medo. Os passos atrás de mim aproximam-se. Sinto um perfume forte, vejo a sombra dele.
Ignoro o joelho e tento correr. Rapidamente tenho dores e sei que não vou aguentar. Caio no chão. Tento agarrar o telemóvel, mas ele já está em cima de mim e atirou a minha mala para outro lugar e não consigo vê-la. Tento gritar, mas parece que estou afónica. Amanhã vou ser eu na capa do jornal. Mas tudo o que eu queria era chegar a casa.
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