Os alunos da Escola Básica dos 2.º e 3.º Ciclos de Valentins-de-Cima já sabiam o que esperar quando aparecia um grande marco de correio no átrio do pavilhão onde decorriam as aulas. A cor vermelha e os corações não deixavam margem para dúvidas: o dia de São Valentim aproximava-se e era um dia muito importante para os estudantes de Valentins-de-Cima.
Rodrigo tinha aprendido a detestar o marco de correio no ano anterior. Durante duas semanas, todas as raparigas da turma tinham exigido que ele lhes escrevesse um postal, quando ele nem sabia o que escrever para uma, muito menos para quinze. Mas o pior tinha acontecido no dia 14. Todas as cartas deixadas no marco eram entregues na aula das dez horas e era sabido que, depois da aula, havia raparigas muito felizes e outras muito tristes. Quem recebesse o maior número de cartas era, para as raparigas, a mais popular e mais interessante. Para os rapazes era um tormento. Rodrigo desconfiava de que algumas raparigas escreviam cartas a elas próprias só para tentarem ter o maior número de postais recebidos.
Quando, no último dia de Janeiro, um grande marco de correio apareceu no átrio, Rodrigo sabia que tinha de evitar, a todo o custo, olhar para lá e não podia ceder aos pedidos das raparigas. Tanto quanto queria saber, não havia qualquer diferença no pavilhão. Aquele marco de correio não existia.
— Para que serve aquilo? — perguntou Pedro, acabado de chegar à porta da sala.
Rodrigo suspirou. Lá se ia o objectivo de ignorar aquela presença.
— É para, quem quiser, deixar cartas de São Valentim. — disse, contrariado.
Pedro era novo na escola. Tinha chegado no início do ano, vindo de outra cidade. Rodrigo não sabia qual. Provavelmente ninguém na turma sabia. Pedro não falava muito e só socializava quando era obrigado. Talvez Rodrigo fosse quem mais conversava com ele e, mesmo assim, sabia pouco sobre o rapaz de olhos escuros. Os outros rapazes diziam que ele era esquisito.
— Como se chama a tua irmã? — perguntou Rodrigo, de repente.
— A minha irmã? — repetiu Pedro, confuso.
— Aquela rapariga do nono ano é tua irmã, não é?
— Sim, é… é a Ana. — respondeu Pedro, ainda sem compreender o motivo da pergunta.
Rodrigo assentiu. Queria perguntar mais, mas chegavam agora outros colegas de turma. “Talvez noutra oportunidade”, pensou. Essa oportunidade chegou uns dias depois, na cantina da escola.
Rodrigo tinha sempre com quem se sentar, mas, ao avistar Pedro sozinho, decidiu ignorar a companhia habitual e dirigiu-se ao fundo da sala, fingindo não reparar nos olhares dos colegas. Pedro não deu pela chegada dele, distraído a ler aquilo que Rodrigo pensava ser o livro de História.
— Posso sentar-me aqui? — perguntou Rodrigo.
Pedro levantou a cabeça e acenou afirmativamente, atarantado com a surpresa. Rodrigo, já sentado, esperou que o rapaz dissesse algo, mas Pedro estava demasiado surpreendido. Ninguém da turma se sentava ao pé dele. Ninguém.
— O que estás a ler? — quis saber Rodrigo.
— Não é nada… — murmurou. Pedro sentia-se subitamente muito consciente em relação àquele hábito de ler ao almoço.
Rodrigo espreitou para o livro, deixando Pedro desconfortável.
— Ainda não estamos nessa parte da matéria. — comentou.
— Eu… eu sei. Gosto de ler sobre História… — acabou por dizer.
Pedro achava que Rodrigo, tal como o resto das pessoas, o achavam estranho, por isso mais valia admitir de uma vez que o era. Talvez Rodrigo o achasse tão estranho que o ia deixar sozinho, mas pelo menos Pedro tinha sido honesto.
Rodrigo não o achou estranho, só curioso. Puxou o livro para o centro da mesa e sorriu.
— Eu não percebo muito de História. — confessou. — Muitas vezes, limito-me a decorar o que leio.
— Podemos estudar juntos quando quiseres. — ofereceu Pedro, quase se arrependendo. Mal se conheciam.
Rodrigo aceitou a oferta e decidiu que ia estar mais vezes com o tão esquisito e singular Pedro. Havia muito para conhecer.
Nos dias que se seguiram, Rodrigo sentava-se com Pedro ao almoço, oferecia-se para fazer par com ele em trabalhos — e até nas aulas de Educação Física — e convidava-o a acompanhá-lo ao bar ou à biblioteca. Quando alguma rapariga se aproximava e lhe perguntava se ia enviar postais de São Valentim, Rodrigo fugia à pergunta e Pedro acabava sempre a rir.
— Todas as raparigas querem um postal teu… — observou Pedro num dos dias, quando estavam sentados numa mesa no canto da biblioteca.
— Elas querem postais, não importa de quem. — disse. — Vais enviar algum?
Pedro soltou uma gargalhada.
— Claro que não! — disse. Parecia quase ofendido com a pergunta.
— Porquê?
— Não gosto de nenhuma rapariga.
— Nem eu… — replicou Rodrigo.
Os dois rapazes estavam a perceber que gostavam muito da companhia um do outro. Conversavam sobre a escola e sobre banda desenhada de que ambos gostavam. Rodrigo percebia agora que Pedro não era tão estranho quanto os outros rapazes diziam e ele não falava muito com o resto da turma porque, na verdade, ninguém da turma fazia questão de falar com ele. Sempre que alguém se dirigia a Rodrigo e Pedro estava presente, era certo que Pedro seria ignorado, como se fosse um ser invisível que só Rodrigo podia ver.
Quando chegou o dia de São Valentim, Pedro já sabia o que esperar. Rodrigo contara, ao pormenor, os acontecimentos do ano anterior. Na aula das dez horas, a professora informou que só entregava os postais no final. As raparigas protestaram, mas a professora ignorou-as e começou a ditar o sumário. Mais de uma hora depois, farta dos queixumes dos alunos, a professora começou então a entregar as tão aguardadas cartas. As raparigas iam contando cada pedaço de papel e olhavam em volta, em parte para confirmar quem tinham sido os rapazes da turma a escrever, mas também para verificarem quantos postais tinham recebido as outras raparigas.
Rodrigo recebeu três cartas. Pedro nenhuma. Quando Rodrigo estava a arrumar as cartas dentro do caderno, pronto para sair da sala, um dos rapazes, João, virou-se de repente para ele.
— O teu namorado enviou-te alguma cartinha de amor? — perguntou João, soltando uma gargalhada, que se multiplicou pela sala.
Rodrigo sentia os olhares de todos e não conseguia reagir. Ao seu lado, Pedro colocou à pressa os livros e o caderno na mochila e saiu da sala. Rodrigo continuava sem saber o que dizer. João afastou-se para comentar algo com outro rapaz e Rodrigo ainda estava preso à cadeira.
Só restava uma rapariga na sala. Chamava-se Ana, como a irmã do Pedro. Aproximou-se de Rodrigo, devagar, a medo.
— Eu tenho dois pais, sabias? — perguntou.
Rodrigo olhou para ela. Não sabia, mas não conseguia responder-lhe. Ela continuou.
— Não faz mal se o Pedro for teu namorado.
Rodrigo queria dizer-lhe que não era, mas Ana já tinha saído. Ele terminou de arrumar as coisas e saiu à procura de Pedro. Não sabia onde ele estaria. Só perto do final da hora de almoço o conseguiu encontrar. Todo o tempo de procura tinha dado tempo para que ele pensasse no assunto. No que significava um rapaz gostar de outro rapaz. Não era algo estranho para ele. Tinha uma tia que namorava com uma mulher. Lembrava-se do que a mãe lhe tinha dito quando ele tinha perguntado se as mulheres podiam namorar com outras mulheres.
— Mulheres podem namorar com mulheres e homens podem namorar com homens. — dissera-lhe. — Desde que haja amor não importa se é homem ou mulher.
Mas Rodrigo não sabia se gostava de rapazes. Nem sabia se gostava de raparigas. Sabia, isso sim, que gostava do Pedro. Não importava se ele era rapaz ou rapariga. Pedro era inteligente, divertido e o seu melhor amigo. Rodrigo encontrou-o sentado no chão, no corredor vazio das salas de desenho. Rodrigo sentou-se a seu lado.
— Dei volta à escola toda. — disse. Pedro não respondeu. — Desculpa o que eles disseram…
— Não faz mal. — murmurou Pedro.
— Faz, sim. Nós não somos namorados.
— Pois não.
— Somos só amigos. — continuou Rodrigo. Esperou que Pedro respondesse, mas ele limitou-se a ficar calado. — Mas eu gosto de ti. — acabou por completar.
Pedro olhou para Rodrigo, sem compreender.
— Não sei se tu gostas de mim, mas eu gosto de ti. — continuou Rodrigo. — Um rapaz pode gostar de outro rapaz. E também pode gostar de raparigas. É muito confuso.
Pedro assentiu.
— Eu sei. — disse Pedro. — Mas a minha mãe diz sempre que isso é estranho e eu não quero ser esquisito.
— Podemos ser esquisitos juntos… — disse Rodrigo, decidido.
Pedro sorriu e Rodrigo agarrou-lhe a mão.
— Mas os outros vão gozar connosco.
— Não faz mal. Eles não têm de compreender.
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