Se há algo que a pandemia parece ter trazido é a recordação daquilo que gostamos de fazer. Se te perguntar, agora, o que gostas de fazer é possível que saibas dizer-me exactamente aquilo que gostas de fazer. Mas e se te perguntasse e não conseguisses pensar em nada? Se a tua vida estivesse tão focada em algo que não conseguias pensar em mais? Foi algo que me aconteceu no ano passado.
Estava numa consulta de psicoterapia e já tínhamos esclarecido que eu estava demasiado focada no que acontecia no trabalho. O meu cérebro só processava Excel, artigos freelancer, livros, livros, livros. A psicóloga fez uma pergunta aparentemente simples: Fora o trabalho e coisas relacionadas com trabalho (incluindo escrever e ler), o que é que gostas de fazer? Não soube responder.
Se me perguntares agora o que gosto de fazer, além de ler e escrever, eu sei dizer-te: gosto de fotografar, de ver séries, de fazer caminhadas com a Lady e com podcasts, de visitar monumentos, de tentar compreender o que vejo quando visito museus, de cozinhar q.b.. Mas naquele dia não conseguia pensar no que gostava de fazer. Era como se não gostasse do que quer que fosse. Ao fim de uns quinze minutos lá me lembrei de que gostava de fotografar, mas não me ocorreu mais. Senti que a minha vida devia ser mesmo muito vazia e triste.
Esquecemos aquilo que gostamos de fazer?
Pode parecer estranho alguém se esquecer daquilo que gosta de fazer, mas acontece. Acontece quando nos focamos demasiado em algo e nos esquecemos de que tem de haver mais na vida. A maior parte das vezes é porque nos focamos tanto no trabalho que nos esquecemos do resto. Foi o que me aconteceu.
Durante semanas, a minha vida era só trabalhar, trabalhar, trabalhar, pensar em trabalho, dormir um bocadinho, repetir. Quando cheguei àquela consulta estava esgotada e não conseguia sequer lembrar-me de algo que não envolvesse trabalho. Uns dias depois comentei isto com uma amiga e ela teve a mesma reacção que eu tive: não conseguiu lembrar-se imediatamente do que gostava.
Acredito cada vez mais que nos deixamos engolir por trabalho. Como podíamos não o fazer? Passamos no mínimo oito horas a trabalhar. No mínimo, claro. Se fizerem tantas horas extra como eu fazia naquela altura então talvez dez horas por dia seja o valor mais correcto. Entre transportes ou trânsito, refeições, banho e afins, não dá para muito mais. Ao fim-de-semana estamos demasiado estafados para pensar no que quer que seja. E é assim que nos vamos esquecendo do que gostamos de fazer.
E é óbvio que é fácil dizer para arranjarmos um bocadinho todos os dias para fazer aquilo de que gostamos. Na prática é difícil. Mas depois daquele momento jurei que um dia ia escrever uma lista do que gostava de fazer e que me ia obrigar a fazer algo de que goste pelo menos uma vez por mês. Porque não quero que a minha vida seja cheia de ficheiros Excel, de conversas onde só se fala de trabalho, de lamentos porque não me lembro da última vez que fiz X ou Y. Tem de haver algo mais além das obrigações da vida, não?
Isto pode parecer uma reflexão estranha em tempos de confinamento, mas acho que também se aplica. Temos restrições, mas de certeza que há coisas de que gostamos que podemos fazer em casa. Talvez esteja na altura de nos lembrarmos daquilo que gostamos de fazer.
Muito interessante o post. Sem dúvida que é importante darmos atenção às coisas que gostamos de fazer. Talvez uma boa solução (pelo menos o que tento fazer) é escrevê-las na agenda, para não me esquecer delas e para saber que tenho aquele tempo, nem que seja uma vez por semana, que posso dedicar àquilo.
Pode resultar, sim. Boa dica!
É impressionante como há tarefas/empregos/situações que consomem tanto da nossa energia, ao ponto de não conseguirmos pensar para além disso. O desgaste emocional e mental é inquietante e, por vezes, não nos apercebemos dessa espiral em que entramos.
«Talvez esteja na altura de nos lembrarmos daquilo que gostamos de fazer». Mais do que nunca, sinto que é a altura certa de o fazermos
Tens toda a razão. Deixamo-nos desgastar a um ponto em que nos sentimos irreconhecíveis…
Que excelente reflexão, Sofia. De facto, acho que é tão fácil deixarmo-nos levar pelo stress do dia a dia que acabamos por nos esquecermos do que gostamos e de muito do que somos. Por isso, esta quarentena também nos vem fazer conhecer melhor ou reconhecer (na maioria dos casos).
Porém, apesar de ter muito o que fazer\gostar em casa estou tão a precisar de ir tomar um café com os amigos!!!
Um beijinho
Concordo completamente: a quarentena está a fazer-nos lidar connosco próprios e obriga-nos a uma certa introspecção, que acho essencial. Talvez seja positivo aproveitá-la para nos lembrarmos do que realmente gostamos de fazer e aproveitar isso em nosso favor.
Tive uma reflexão semelhante, talvez em 2018, especialmente porque estava em mudanças profissionais e de horário e sentia que vivia para trabalhar. Não conseguia encaixar a realidade dos horários laborais com tempo livre para explorar outras versões de mim. Acho que foi por isso que aderi tão bem à rotina de iniciar o dia às cinco da manhã e que defini com rigor aquilo que queria (voltar a) fazer nesse período. São horas onde posso ser ou fazer o que quiser, sem expectativas. É libertador começar o dia a ser exatamente quem eu espero ser e nada mais.
Eu tentei, na altura que refiro no texto, acordar às 6 da manhã, mas acaba por ocupar aquela hora noutro trabalho (estava a fazer freelancer + trabalho normal) e sentia-me completamente exausta, fosse a que horas fosse, o que levou toda a situação a um extremo nada recomendável.