Há uns anos a Super Bock fez uma campanha em que perguntava: O que é que se passa com a amizade? Passaram cinco anos e nunca mais um anúncio publicitário me disse tanto durante tanto tempo. De vez em quando, várias vezes por ano, lembro-me de partes daquele texto. E se devia perguntar-me se a pessoa que escreveu aquilo recebeu um aumento merecido, aquilo que realmente dou por mim a perguntar é: o que é que se passa com a amizade? Já não sabemos o que é a amizade?
Da amizade dos kolmis* às visualizações de histórias no Instagram
Eu não cresci com internet em casa. Telemóvel só no final do 7.º ano. Até conseguir aceder diariamente à internet passaram vários anos. Durante as férias enviávamos mensagens de texto, tantas quanto o nosso pacote deixava. Quando acabavam as mensagens grátis comunicávamos por kolmis*. Era assim que sabíamos que a outra pessoa estava viva, que estava a pensar em nós.
Até podíamos ter hi5 e saber como trabalhar com o MSN, mas não tínhamos internet em casa. Eu só tive acesso à internet a meio de 2009. Só dois anos depois tive esse acesso a partir de casa. Portanto, os Verões passavam-se entre mensagens de texto, kolmis* e uma ou outra ida ocasional ao MSN, quando dava.
Em 2009 foi quando o Facebook e o Twitter começaram a ganhar uma expressão cada vez maior em Portugal. Com eles, uma nova forma de nos mantermos em contacto e, no caso do Facebook, de conversar. Nos últimos anos, do chat do Facebook passámos a ter hipótese de falar pelo Whatsapp ou pelas mensagens do Instagram. Mas falamos cada vez menos. Eu nem tenho o Facebook ou o Messenger do Facebook no telemóvel. Se, por um lado, as redes sociais nos aproximaram também há que dizer que, por outro lado, nos afastaram. Já não sabemos o que é amizade.
Quando sabes os acontecimentos da vida dos teus amigos pelo Facebook
Uma amiga vai casar para o ano. Quando recebi a mensagem dela fiquei tão contente que chorei um bocadinho. Como tenho poucos amigos, sinto cada momento bom deles como se fosse um momento da minha família. Foi este o caso. Depois lembrei-me de algo que aconteceu há uns anos. Quando eu soube que uma pessoa que era minha amiga estava grávida… através de uma publicação de Facebook.
De vez em quando perguntamo-nos o que aconteceu com a amizade que tínhamos com X ou com Y e a resposta é simples: a vida aconteceu. Fomos viver para sítios diferentes, perdemos contacto, yada yada yada. Noutras vezes o que acontece é que alguém que achavas ser teu amigo tem as maiores novidades do mundo e partilha-as com o mundo e nunca contigo. O que é que se passa com a amizade?
Quando é que publiquei no Facebook passou a ser a mesma coisa de contar directamente? Quando é que vi a tua história no Instagram passou a ser a mesma coisa que saber que a outra pessoa está bem? Quando é que deixar os nossos amigos pendurados durante meses, sem respostas a mensagens, sem cumprir promessas, passou a ser algo normal, aceitável? Já não sabemos o que é a amizade?
O que é que se passa com a amizade?
Aqui há dias, vi alguém dizer, no Instagram, que este tempo de quarentena tinha sido muito útil para perceber quem eram as pessoas que realmente se preocupavam com ela. Achei curioso porque, para mim, a quarentena só provou aquilo que eu já devia ter percebido no ano passado.
Quando uma amiga se chega ao pé de nós e nos diz que está a falar com alguém em quem está interessado e a pessoa deixou de lhe responder, nós dizemos sempre: então essa pessoa não está assim tão interessada em ti. Parte para a próxima. Mas e com os amigos? Não fazemos o mesmo? Se estamos a fazer planos ou a tentar fazer planos e a outra pessoa, nossa amiga, deixa de responder não se devia aplicar o mesmo? Dizer que essa pessoa não está assim tão interessada em nós, na nossa amizade?
A culpa de as redes sociais nos terem afastado não é delas, é nossa. Nós é que tomámos como garantido aquilo que elas nos dão, aquela falsa sensação de familiaridade. Achamos que, por vermos as fotografias, as histórias, os tweets, conhecemos aquela pessoa, sabemos tudo sobre a vida dela. E o resto? E o que ninguém vê? E aquelas vezes em que partilhamos algo engraçado, mas nos sentimos na merda? Quando é que ver o que alguém partilha nas redes sociais passou a ser considerado ser bom amigo? Ou, simplesmente, ser amigo?
Fizemos tudo mal. As redes sociais deviam aproximar-nos, dar-nos novas formas de comunicar. Não deviam ser usadas como forma de achar que ainda somos amigos. E o estar juntos? E as mensagens a perguntar se está tudo bem? Como está a nossa família, o nosso cão? E os planos? E os quando é que vens cá? Ou os assim que for possível, vamos tomar café? Já não sabemos o que é a amizade?
Habituámo-nos a adiar encontros cada vez com menos caracteres, conversamos com ecrãs, rimo-nos com as teclas e fazemos likes para enganar a saudade; mas entre um ‘não posso e outro’ os grandes amigos vão-se tornando estranhos, o que é estranho.
De amigos a estranhos: se não há tempo, já não fazemos tempo?
Já passaram três anos desde que publiquei um texto chamado Se não há tempo, fazemos tempo. A pessoa daquele texto já não é minha amiga. O que aconteceu? A vida. No entanto, sempre que me lembro de que, naquela tarde de sábado, entre trabalho e outros compromissos, conseguimos fazer tempo, tenho um bocadinho mais de fé na amizade, embora seja fé de pouca dura.
Acho que tomamos por garantidas as amizades, principalmente as mais antigas. Se estão na nossa vida há tanto tempo, já não vão sair, pensamos. Talvez por estarem há tanto tempo exigem ainda mais, porque nos conhecem, porque já aturaram e aguentaram tanto que merecem mais.
Tomamos as amizades por garantidas. Cancelamos encontros, ignoramos mensagens, fingimos que as histórias do Instagram nos dizem tudo o que precisamos de saber sobre aquela pessoa, fingimos que ainda somos amigos. Mas entre mensagens ignoradas e encontros que não aconteceram, a vida acontece. Passam dias, semanas, meses. Quando damos conta, não nos lembramos da última vez em que vimos aquela pessoa. Não sabemos se está mais magra ou mais gorda. Não sabemos se está feliz ou se voltou a cair em tristeza. Não sabemos que dificuldades tem, que planos faz, que sonhos mantém.
Passam dias, semanas, meses. Já não é amizade. É outra coisa qualquer. Estranhos com memórias, talvez. E fartamo-nos. Porque não podemos esperar para sempre. Porque temos de aceitar que as pessoas mudam. Mudam pela vida, pelas experiências, pelas relações, pelos trabalhos. Mas mudam. E quando mudamos nem sempre encaixamos na vida que tínhamos, nas pessoas que tínhamos.
Entre um não posso e outro sem resposta, vamos perdendo a amizade. Quando damos conta, nada resta. Temos o trabalho, podemos ter o namorado, a casa, o ginásio, o que for. Mas não temos os amigos. Ficámos assim. Estranhos com memórias. Já não somos amigos. Já não há amizade.
O Miguel Esteves Cardoso escreveu uma crónica chamada Amigos para sempre, em que dizia assim: O tempo não passa pela amizade. Mas a amizade passa pelo tempo. É preciso segurá-la enquanto ela há. Somos amigos para sempre mas entre o dia de ficarmos amigos e o dia de morrermos vai uma distância tão grande como a vida.
A amizade passou com o tempo. É como aquele balão que deixámos fugir em criança, aquela folha que caiu da árvore e voou para nunca mais a vermos. Somos assim agora. Voámos. O tempo passou por nós e deixámos que levasse o que havia. Já não sabemos o que é a amizade. Mas está tudo bem. Enquanto uns não têm tempo, não fazem tempo, não se importam com o tempo, há sempre outros que, de vez em quando, contrariam o tempo e mostram que sim, Sofia, ainda sabes fazer amigos de jeito.
Talvez a moral desta história seja simples: não tomes as amizades por garantidas. Achas que estão ali para sempre, guardadas, sem lhes prestares atenção mas um dia chegas e voaram. Foram à sua vida, aos seus sonhos, às pessoas que mesmo sem tempo fazem tempo. Não tomes por garantidas as amizades. Faz tempo. Aproveita o tempo. O trabalho pode pagar-te as contas, o namoro pode dar-te orgasmos, o ginásio pode dar-te músculos, a Netflix pode dar-te séries sem fim, mas nenhum deles te dá o que um amigo pode dar. A box da televisão deixa-te andar para trás, podes rever o episódio, mas não podes rever a vida. Pára de achar que é tudo garantido. Nada está garantido. Nem a amizade.
* Se não sabes o que é um kolmi: a TMN (agora MEO) tinha um serviço, chamado Kolmi, em que podíamos marcar um número e esse número recebia uma mensagem a dizer que pedíamos para nos ligar. Está tudo explicado neste artigo, se quiseres ler.
Vivemos num tempo em que é tudo muito mais fácil e intuitivo, no sentido em que basta um clique para combinarmos coisas, e, mesmo assim, parece que nos vamos afastando.
É natural que as pessoas não conversem todos os dias. É natural que alguns laços se desfaçam, porque crescemos e não nos identificamos sempre com os mesmos. É natural que o nosso espírito não esteja sempre com a maior predisposição para conviver. O problema é quando começamos a não sentir vontade de partilhar essas pequenas ou grandes coisas com que, supostamente, é nosso amigo. Aí, sim, há algo de errado. E é preciso refletir sobre o assunto.
Caramba, este texto veio de encontro ao que tenho vindo a pensar sobre as amizades… estou um pouco cansada de ser sempre eu a dar em relação as amizades, perdi a minha mae, a minha melhor amiga, ha um mes e dou por todos os dias a querer pegar o telefone para falar com ela, depois caio em mim, olho para cima e sinto-a…
Muita força!
Li o teu texto e vieram-me as lágrimas aos olhos. Nestes últimos tempos percebi realmente quem quero que permaneça na minha vida. No início de Abril perdi uma pessoa, e não imaginas a quantidade de amizades tóxicas tentaram entrar em contacto comigo pq perceberam que estava frágil. Pessoas, se não vos falo por alguma razão é. Amigos são aqueles que nos surpreendem quando menos esperamos e que estão lá sempre quando precisamos, são aqueles que nunca nos vão trocar por nada. Se uma pessoa chega aos 30 anos e não sabe quem são realmente os seus amigos, temos graves problemas em mãos. Obrigada Sofia 🙂