Se o primeiro episódio serviu apenas de apresentação, o segundo episódio do podcast consegue dar-te uma visão muito mais explícita do porquê de se chamar Crise de Identidade.
Neste episódio quero falar sobre millennials insatisfeitos. Eu sei, eu sei. Isto soa a pleonasmo, não é? Aliás, quero começar por sugerir ao Priberam que passe a considerar millennial e insatisfeito sinónimos. Só assim faz sentido.
A ideia de falar sobre este tema veio de uma newsletter que enviei há umas semanas em que falava sobre ter sido despedida, sobre receber o ordenado mínimo e coisas do género. Nunca tinha recebido tantas respostas a uma newsletter.
Eis um excerto desse texto:
Fiquei destroçada porque ganhava mal e precisava de cada cêntimo mal pago. Porque gastava (e bem, para ser justa) os cento e poucos euros que sobravam do meu ordenado para pagar a psicoterapia e precisava constantemente de dinheiro da minha mãe ou de uma conta na qual nem devia mexer para conseguir ter algum dinheiro na carteira.
Perder aquele trabalho fazia-me estar ainda mais longe do que eu queria. Não tinha dinheiro para seguir qualquer objectivo que tivesse (sim, estava ligeiramente falida) e, por isso, estava longe do meu maior objectivo.
Entretanto contei também o que fiz neste espaço de tempo em que mandei currículos, veio a Covid-19 e arranjei um trabalho noutra área, completamente diferente da minha. Acho que isto define a vida de muitas pessoas desta geração.
Comecemos precisamente por aí. Millennials são aqueles que nasceram entre 1981 e 1996, mais coisa menos coisa. Eu nasci em 1994. Para mim soa quase a duas gerações diferentes, porque eu não identifico os mesmos problemas na geração dos anos 80… mas se calhar até somos mais parecidos do que eu acho.
É inegável que há muita gente a associar os millennials a uma geração má, o que é injusto. Sem querer vitimizar-nos, acho que estamos numa posição difícil. A geração anterior acha que nunca lhes chegaremos aos calcanhares. A geração seguinte é considerada a salvadora do mundo. E nós? Nós ficamos no meio de uma valente crise de identidade, em que não somos bons o suficiente, nunca seremos bons o suficiente e ainda temos de tentar pagar uma renda extraordinariamente cara quando recebemos menos de 600 euros líquidos.
Talvez seja mais do que isto. Claro que há pessoas desta geração que estão bem da vida, se calhar estão quase completamente satisfeitos. Mas há outros que não estão. A maioria, talvez. Estudámos. Se calhar até fizemos a licenciatura, o mestrado e até uma pós-graduação. E mesmo assim não conseguimos trabalho. Ou então vamos trabalhar para onde calha porque precisamos de cada cêntimo… mesmo que sobrem poucos ao fim do mês. Sim, ainda vivemos em casa dos pais. Onde queriam que vivêssemos se o dinheiro não chega para tudo?
Acredito que todos queríamos ter um futuro positivo, mas já dei por mim a pensar no caminho traçado e a perguntar-me se foi o correcto. Também já dei por mim a pensar se vale a pena planear muito do futuro quando de repente nos aparece uma pandemia e temos de pôr a vida em stand-by.
Tornando isto sobre mim eu fiz uma licenciatura. Fui trabalhar umas semanas num local onde não fui paga. Fui fazer uma pós-graduação. Fui a dezenas de entrevistas absolutamente inúteis, onde me ofereciam estágios curriculares quando eu já não os podia fazer legalmente. Estive sem trabalhar durante um ano e meio e, deixa-me que te diga, é lixado. Toda a gente tem uma opinião e toda a gente quer partilhá-la contigo. Todas elas são semelhantes, na verdade: todas querem dizer-te o que devias fazer. Ou que a pessoa X ou Y já trabalhava com 18 anos e yada yada yada. Como se a culpa de não te responderem aos e-mails e aos currículos fosse toda tua.
Depois deste ano e meio arranjei dois trabalhos ao mesmo tempo. Fui do 8 ao 80. Trabalhei durante meio ano como freelancer e como trabalhadora por conta própria. Trabalhava 8, 9, 10 (às vezes mais) horas num trabalho e chegava a casa e ainda tinha outro. Ganhava o ordenado mínimo num e era paga à peça noutro. Estava em Lisboa, portanto pagava uma fortuna por um quarto pequeno. Mais o passe. Mais comida. Mais uma visita à minha mãe uma vez por mês. E depois tive de começar a fazer psicoterapia, portanto o dinheiro que sobrava no fim do mês era pouco.
Eu gosto de estudar e quero estudar mais, mas com aquelas condições era algo impossível. Não consegui sequer chegar ao fim dos 6 meses com dinheiro para pagar meia propina. Quando acabou o meu contracto e disseram que não iam renovar vim para casa da minha mãe. Em primeiro lugar porque não queria ficar em Lisboa… já não queria lá estar há muito tempo. Em segundo lugar porque queria reagrupar ideias num lugar calmo, onde não tivesse gastos.
Depois de uns meses, com pandemia à mistura, surgiu a oportunidade de trabalhar aqui perto. Se era o ideal? Não. Mas gostei do desafio, gosto das pessoas e encontrei aqui o caminho ideal para juntar realmente dinheiro e tentar planear outras coisas.
Disseram-me uma vez que eu não estava a trabalhar porque não queria. Doeu. Mas o facto de ter ido trabalhar para uma coisa totalmente diferente mostra que o meu medo não é trabalhar. É estar na merda.
Mas calma. Nem tudo é mau nesta geração.
Claro que somos quase patologicamente insatisfeitos. Mas sabes o que vem da insatisfação? A mudança. Apesar de não nos considerarem uma geração particularmente dotada de actividade, acho que somos os impulsionadores da mudança. Criámos coisas únicas, instrumentos que são usados por tantos e que darão grandes motivos para continuar às gerações seguintes.
Tendo em conta que os dados que tenho mostram que quem me acompanha é da minha geração, acredito que sejas millennial e gostava muito de conhecer a tua história também. Portanto contacta-me e conta-me. Não sei se haverá episódios com convidados, mas, a haver, acho que era bom debatermos aquilo que se passa connosco também.
Este episódio foi uma espécie de desabafo, mas espero que tenhas gostado. Até à próxima.
Revi-me em tantos aspetos deste episódio! Até porque há alturas em que parece que dás voltas ao mundo e, mesmo assim, o teu esforço nunca é suficiente. E, depois, há pressões/comentários de todo o lado e somos obrigados a gerir tudo isso como se fossem coisas mínimas.
Eu nasci já no final da década de 80, mas grande parte do que descreves aplica-se a mim. O meu percurso é tudo menos linear.
Uma vez também me disseram “Não trabalhas porque não queres”. E eu trabalhava, não de uma forma tradicional, mas trabalhava. Acabei psicologia em 2010. Terminei o curso e voltei para a casa dos pais. Em seis meses encontrei estágio profissional num lugar onde trabalhei durante 18 meses, 7 dos quais não foram remunerados. Como no início não ganhava nada, comecei a fazer apoio ao estudo ao domicílio no fim do dia de trabalho. Depois fiquei desempregada. Comecei a fazer do apoio ao estudo a minha atividade profissional (cheguei a não ter fins de semana, mas mesmo assim não era trabalho e devia estar disponível para outro tipo de solicitações). Não era o ideal, mas permitia-me estar ocupada e ganhar dinheiro. E era isto que fazia, quando ouvi a célebre frase. Doeu muito, porque veio de uma pessoa a quem ajudei a fazer CV, carta de apresentação e candidaturas a emprego (e que conseguiu um emprego com a minha ajuda). Desde esta altura nunca mais consegui manter uma relação próxima com esta pessoa. O dinheiro que juntei permitiu-me continuar a formação. 2020 tem sido um ano muito generoso comigo. Estou muito grata a tudo o que me aconteceu neste ano. Finalmente consegui um trabalho justamente remunerado e que eu adoro. Mas sim, escalei a montanha para o conseguir e acho que ainda terei de continuar a subir, porque a longo prazo não tenho nada que indique estabilidade. Escorreguei muitas vezes por ela. Chorei imenso de desespero por me sentir a ficar para trás, por não ter a independência que achava que devia ter, por olhar para mim e me sentir incompetente, alguém sem valor para o mercado de trabalho. O meu próximo passo será conseguir casa para viver, mas as rendas estão insuportáveis.
Sofia, quero acreditar que também conseguirás alcançar o topo da tua montanha. E no caminho duro que percorreres vais ganhar cada vez mais resiliência para combater aquilo que se surge no teu caminho e te obriga a recuar na escalada.
Gostava que partilhasses mais das tuas aventuras na clínica veterinária. Acho que deve ser bom trabalhar com animais. Conseguem ser mais fieis que muitas pessoas.
Tudo de bom para ti, Sofia. Que 2021 te traga serenidade e múltiplas oportunidades de seres feliz.