Não sei bem quando é que comecei a perceber que a minha família não era como as outras, mas talvez tenha sido ao ouvir as minhas colegas falarem sobre o que tinham feito nas férias grandes: a casa de praia arrendada pelos pais (sempre no plural), os dias passados com os avós (tanto os maternos como os paternos), os almoços e tardes com primos, tios e outros familiares, dos mais aos menos distantes. […] Pensando melhor, acho que também percebi que a minha família não era como as outras quando comecei a identificar sempre as mesmas figuras masculinas do lado de lá do portão do colégio. Se pusessem as minhas amigas alinhadas de um lado, os respetivos pais do outro, e me pedissem para unir os pares certos […], eu não saberia a que pai correspondia cada menina, mas não teria dúvidas de que, no final, só sobraria eu, de lápis na mão.
Conheci a Rita através da ficção, no inverno de 2014. Na altura, eu escrevia na ESCS MAGAZINE e uma das minhas colegas de equipa entrevistou a Rita a propósito de um projeto chamado Quem Conta Um Conto. Foi aí que eu comecei a ler a Rita. O blog veio depois. O blog da Rita era um bocadinho aspiracional para mim: viajar pelo mundo e ir jantar a sítios fixes de Lisboa era o tipo de vida que eu queria ter na altura. Foi quando os livros e alguns pedaços da vida da Rita começaram a ser tema no blog que a aspiração se foi e ficaram a identificação e a admiração. Gosto muito da Rita e revejo-me em muitos dos traços que ela partilha no mundo digital. Numa altura em que eu queria escrever e me sentia presa foi um workshop dela que me desbloqueou e me fez escrever um livro inteiro em meio ano. As minhas segundas-feiras começam religiosamente com o Terapia de Casal. Confio muitas das minhas escolhas literárias às opiniões que ela partilha. E estava há anos à espera deste momento: o momento em que o primeiro livro a solo da Rita ia ser uma realidade.
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luto, famílias
As Coisas Que Faltam
Nunca tentei imaginar que tipo de livro seria o primeiro livro da Rita. Podia ser muitas coisas, não sei bem quantas. Quando soube que As Coisas Que Faltam seria um livro sobre uma mulher que cresce a sentir que a vida só será completa e terá sentido quando conhecer o pai… eu soube que a Rita tinha escrito um livro triste. E soube também que de certeza que esse livro me ia atingir como um meteorito.
As Coisas Que Faltam é a história de Ana Luís. Aos 8 anos, Ana Luís pediu à mãe que a deixasse conhecer o pai e ela disse que não. Crescer sem pai é algo que faz com que Ana Luís se sinta incompleta, diferente, condenada a uma vida de tristeza. Se conhecer o pai, pensa ela, tudo na vida será diferente, ela deixará de se sentir incompleta e a vida vai finalmente fazer sentido. Mas ela vai crescendo sem o pai. Com uma premissa centrada naquilo que somos — ou podemos ser — quando algo nos falta, esta é uma história que não precisa de ser única. Então o que faz uma história que não é única ser tão real, tão especial? Bem, vou falar de mim.
Quem somos quando há algo que nos falta?
Eu cresci sem pai. Se o vir nem sequer o reconheço. Durante muito tempo, enquanto crescia, sentia-me exatamente como a Ana Luís no início do livro. A minha família era diferente das famílias dos outros. Só conhecia mais uma família parecida e essa tinha um luto real com que lidar, por isso não era bem a mesma coisa. Eu só tinha a minha mãe e só tinha tido a minha mãe. Aquela família tinha tido um pai, algures, por isso não era bem a mesma coisa. Não me lembro se alguma vez fizemos árvores genealógicas, mas sei que todos os anos eu temia o Dia do Pai. Que coisa masculina teria de fazer para a minha mãe nesse ano? Que adereço despropositado iria oferecer à minha mãe, para ela guardar com muito cuidado, como se fosse a melhor prenda do mundo?
Somos todos pessoas incompletas a tentar ser um bocadinho menos incompletas a cada dia.
Ao contrário da Ana Luís, eu sempre soube o nome do meu pai, dos meus avós paternos e dos meus irmãos. Sempre soube a história. Não sei se alguma vez pedi para o conhecer, mas sei que foi algo que nunca quis realmente, principalmente quando comecei a perceber que as pessoas quando querem ter uma relação com alguém tentam e eu sabia que aquele homem estava muitas vezes perto de onde eu vivia e não tentava, então por que raio havia eu de querer na minha vida alguém sem vontade de estar lá?
Só à medida que fui crescendo e conhecendo mais pessoas percebi que havia mais famílias como a minha. Eu não estava sozinha. Nunca estive, na verdade, mas estava ainda menos. No entanto, quando comecei a ler As Coisas Que Faltam, houve algo que me atingiu e, de repente, eu era outra vez aquela menina de oito anos a ligar pais e filhas e a ficar de lápis na mão.
Como é que eu explico tudo o que o livro foi para mim sem explicar tudo o que o livro é?
Identifiquei-me com As Coisas Que Faltam de uma forma como nunca me tinha acontecido com um livro. Tenho muitos livros que mexeram comigo, chorei com vários, e há muitos livros que até têm pedaços da minha vida, mas este? Este tem muito mais. Ler As Coisas Que Faltam foi como encontrar várias peças de um puzzle que não sabíamos que estávamos a construir: estavam ali bocadinhos de várias fases da minha vida, bocadinhos da minha mãe, da minha avó, da minha bisavó e até de um ex-namorado da minha mãe. A certo ponto até um bocadinho da minha paixão do secundário encontrei por lá. Nenhuma daquelas personagens é igual a mim ou a alguém da minha vida, mas estes bocadinhos… estes bocadinhos podiam perfeitamente ser de pessoas da minha vida.
Acho que é aqui que reside a resposta à pergunta que fiz ali em cima: o que faz uma história banal ser tão real, tão especial? É mesmo isto. Uma família monoparental, em que uma das partes simplesmente nunca faz parte do cenário, é algo normal, banal e, por isso, é real. E faltam-nos histórias reais, faltam-nos histórias escritas de forma simples, mas com uma beleza tremenda. Faltam-nos personagens como a Ana Luís — fragmentadas, defeituosas. Faltam-nos histórias que parecem contadas por uma amiga num serão entre chá e bolachas. As Coisas Que Faltam é essa história.
Cheguei à conclusão de que a minha solidão era inevitável, uma condição com que tinha nascido. Fazia parte de mim como uma daquelas doenças que não matam, mas também não têm cura. Era crónica, no fundo.
A Ana Luís tem muitos defeitos, é de uma passividade que dá vontade de a abanar e pedir que, por amor de qualquer coisa, faça alguma coisa por ela, mas também é tão triste e tão solitária que sinto que não queria largar o livro por causa dela. Não queria deixá-la ainda mais sozinha.
Aquilo que senti na escrita da Rita d’As Coisas Que Faltam em relação a todas as versões de escritora que já conhecia dela foi que a escrita da Rita é um espelho muito real daquilo que a Rita é: é uma escrita simples, sem esforços redobrados para parecer bonita e com uma capacidade extraordinária de fazer as palavras juntar-se e formarem algo que nos dá tanto e nos tira tanto.
Quando entreguei o meu exemplar à Rita para ela assinar ela reparou logo que o tinha enchido de post-its. Marquei muito este livro, mas não tanto quanto ele me marcou. Sei que voltarei a ele como volto àqueles livros que habitam no núcleo dos meus favoritos e que vou levando de casa em casa, como se precisasse deles para estar em casa.
Não sei como seria sem as coisas que me faltam, mas sei que mesmo que nunca vá descobrir este livro me fez sentir muito acompanhada. E, mesmo que tenha gasto uma bela quantidade de lágrimas nas últimas sessenta páginas, voltarei a ele. Voltarei sempre.
Outros livros do autor
Terapia de Casal, com o Guilherme Fonseca.
Título original: As Coisas Que Faltam
Autora: Rita da Nova
Ano: 2023
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Sinto que nenhuma palavra fará sentido depois desta partilha, que me deixou de lágrimas a espreitar!
«E faltam-nos histórias reais, faltam-nos histórias escritas de forma simples, mas com uma beleza tremenda. Faltam-nos personagens como a Ana Luís — fragmentadas, defeituosas. Faltam-nos histórias que parecem contadas por uma amiga num serão entre chá e bolachas. As Coisas Que Faltam é essa história», assino por baixo
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