desengatados: ser mulher numa dating app

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Este tema não fazia parte da minha lista. Como é bem claro que isto é a experiência de uma mulher cis-hetero, não pensei realmente em falar da perspetiva feminina de usar uma aplicação de encontros. No entanto aconteceu algo inusitado enquanto preparava o episódio anterior. Depois de vários dias com ansiedade descontrolada, comecei a escrever o episódio pouco mais de 24 horas antes de ter de o lançar. E, a certo ponto, comecei a encaminhar o episódio para algo com que não contava. Percebi que, na realidade, queria falar sobre isto. Sobre ser mulher numa aplicação de encontros.

Vamos retroceder um pouco. No episódio passado comecei por dizer que é totalmente válido procurar uma relação séria numa dating app. Logo a seguir expliquei que é também totalmente válido procurar algo casual ali porque há mesmo de tudo por isso pode encontrar-se de tudo (ou quase). A minha ideia era desconstruir a ideia de que uma relação casual não é uma procura válida. No entanto percebi que precisava de ir a outro tema para mostrar esta validação. Porque procurar uma relação séria normalmente é considerado válido para toda a gente. Provavelmente já todos passámos pelo desconforto de ter tios, primos, vizinhos ou o padeiro a perguntar pelo namorado. Não ter uma relação é considerado algo triste e, por isso, somos quase encorajados a almejar uma relação séria. Claro que é possível que não vás dizer que já criaste conta no Tinder para encontrar namorado, mas, se dissesses, pareceria melhor e seria mais bem recebido do que se dissesses que estás só a procurar algo casual… pelo menos nestas bolhas sociais de que estamos a falar.

No entanto, há algo curioso noutra perspetiva. Procurar uma relação séria parece ser algo válido e encorajado para toda a gente. No entanto se falarmos sobre procurar uma relação casual há double standards… tal como acontece em muitas outras questões da vida. Um homem cis-hetero dizer que só quer algo casual é algo encarado com uma certa normalidade. Como se um homem não estar pronto para uma relação séria ou simplesmente querer explorar o mundo fosse algo mais natural. Mas se for uma mulher a dizer que só está a procurar algo casual… não, não é positivo. É uma galdéria. Ou pior. E porquê? Porque não é dada à mulher a mesma liberdade sexual que é dada a um homem. Um homem envolve-se com dezenas de mulheres e é okay, faz parte, é incrível. Uma mulher envolve-se com dezenas de homens e é uma puta, nunca vai assentar, deve ter algum problema.

Talvez por ainda haver este tipo de pensamentos entranhados em muitas mentes, torna-se desafiante ser mulher e estar numa dating app. Já contei algumas histórias e tenho plena consciência de que, para alguns, tudo isto já é uma promiscuidade. E nem vamos falar do facto de ter assumido duas situationships… rainha da promiscuidade.

O que é que isto diz sobre mim?

Mais uma vez, isto é a minha experiência, portanto vale o que vale. Voltamos ao início, quando pensei em criar Tinder pela primeira vez eu própria me vi envolvida num debate interior sobre que tipo de pessoas vão para o Tinder. Pior: que tipo de mulheres vão para o Tinder? O que é que ir para o Tinder dizia sobre mim?

Eu cresci numa aldeia pequena do interior de Portugal, onde continua a haver missa semanal ao domingo e onde durante alguns anos eu fui à missa, fiz catequese, fiz primeira comunhão, profissão de fé e crisma — embora aqui já tivesse sido mais por vontade de um dia poder ser madrinha do que por crenças. Nem sei se alguma vez houve mesmo uma crença. Para ajudar a este mix católico, eu sou filha de uma mãe solteira. O que significa que eu cresci a ouvir mil e uma coisas sobre mulheres, a liberdade de mulheres, o que se diz sobre alguém ter múltiplos parceiros, etc. É incrível como as coisas que ouvimos durante anos e nas quais não acreditamos ficam entranhadas em nós.

Decidi que ir para o Tinder não dizia nada de extraordinário sobre mim além de que queria conhecer pessoas e fui. Mas demorei a dizer a alguém que estava no Tinder porque, mais uma vez, não sabia o que iam pensar. Acho que falar sobre isso nas redes sociais foi uma forma de moldar a narrativa de maneira a ser eu a escolher o que aquilo queria dizer sobre mim e não as ideias pré-concebidas… que aparentemente eu também tinha.

Isto é aquilo em que eu acredito hoje: uma mulher no Tinder não diz nada sobre essa mulher além do facto de que essa mulher quer conhecer pessoas. Porque é exatamente isso que quer dizer se um homem estiver no Tinder. O objetivo de conhecer estas pessoas, sejam homens ou mulheres, já diz respeito a cada um. Já lá vamos.

Outra coisa que me preocupava sobre o Tinder era as fotografias. Havia o mito de que as fotografias de mulheres tinham de ter o mínimo de roupa possível e isso incomodava-me. A verdade é que só escolhi fotografias de que gostasse e onde me sentisse confortável. A certo ponto pus uma fotografia de biquini e sim… tive mais gostos e matches nessa altura. Mas eu também tentei a sorte com alguns que tinham fotos em tronco nu por isso acho que é justo.

E depois vem tudo o resto.

As conversas em que o homem te diz que só não gostas de X porque nunca experimentaste. Ou que só não gostas de BDSM porque não fizeste com ele. Ou que se não queres foder então não devias estar aqui.

Mas não são só as conversas lá. São aqueles pequenos comentários que dizem: mas achas que vais encontrar o amor da tua vida aí? Mas vais andar a saltar de gajo em gajo? E metes conversa com gajos? Não deviam ser eles a fazer isso? Nunca te vão levar a sério se andas no Tinder

Estes pré-conceitos sobre a sexualidade feminina são complexos. Por um lado, levei com muitos homens a tentar dizer-me de que é que eu devia gostar ou não gostar, a ignorarem os meus nãos e a tentarem agir como se eu não pudesse realmente rejeitá-los ou não pudesse saber algo ou como se um não fosse eu a fazer-me difícil. Spoiler: não era.

Por outro lado, sinto que havia sempre uma certa expectativa em que não correspondia. Se eu dizia que metia conversa não devia porque sou mulher e as mulheres não podem dar o primeiro passo. Se dizia abertamente aquilo que queria e não queria estava a ser demasiado exigente. Se estabelecia os meus limites tentavam manipular-me de forma a que mudasse de ideias. Se eu dizia que estava numa situationship não podia ser por opção própria. Uma mulher não podia escolher uma relação casual.

Flash news: uma mulher pode escolher uma relação casual. Uma mulher pode escolher o que quiser. Portanto sim, pode meter conversa, pode e deve estabelecer os seus limites, pode e deve dizer não sempre que não quer fazer algo.

Double standards

Já sabemos que ainda existem muitos double standards no que a homens e mulheres diz respeito. Se o homem faz lides domésticas é encarado como uma sorte, caso raro, que bom que ele ajuda em casa. Se a mulher faz o mesmo é só o habitual, não faz mais do que a obrigação. Se o homem tem uma presença regular na vida dos filhos, acompanha a consultas, pede licença de paternidade, é um excelente pai, que extraordinário. Se a mulher faz o mesmo está só a fazer a obrigação dela enquanto mãe. O homem tem de gostar de futebol, a mulher de ir às compras. O homem pode sair com várias mulheres sem ser questionado. A mulher não pode sair com vários homens sem ser questionada.

E tudo isto porque tudo o que está relacionado com a intimidade e a sexualidade feminina não pode exceder os limites que alguns acreditam que existem. Falar de períodos? Cena de mulheres, é melhor falar baixinho. Orgasmos? Se ela não teve é porque o problema é ela. Tentar perceber o tipo de relação que se adapta melhor à pessoa que se é? Mas que é isto? Mas estamos no século XXI ou quê?

As coisas mais difíceis para mim

Para mim foi difícil fazer-me ouvir algumas vezes. Houve muitos não que tive de repetir até ser ouvida e respeitarem a minha decisão. Achavam sempre que me estava a fazer difícil.

Se recusava sexo levava com mensagens muito simpáticas, a acusarem-me de várias coisas, quando na verdade eu simplesmente não estava interessada.

Quando disse a alguém que estava a sair com uma pessoa mas era casual (e isto tinha sido escolha minha) disseram-me que não me respeitava e que isso não era bom para mim, para uma pessoa como eu.

Quando tentei impor limites numa situação que me incomodava disseram-me que estava a exigir demasiado, mas eu só exigi respeito.

E depois havia o assédio. Se estava no Tinder estava disponível logo devia estar disponível para tudo e todos, certo? Errado. O princípio da reciprocidade que existe nas dating apps pressupõe desde logo que não estamos disponíveis para todos. Porque para haver um match têm de ser os dois a querer. Então o que levará alguém a assumir que é okay assediar-te só porque sabe que estás no Tinder? Bem… já o facto de assediar é questionável, mas you get the point.

Eu acredito que seja realmente mais fácil para uma mulher ter matches no Tinder. Mas não sei se isso compensa tudo o resto.

Também acredito e defenderei sempre que é tão válido procurar uma relação séria como uma relação casual no Tinder, sejas homem ou mulher. E, se fores mulher, podes procurar o que quiseres. A sério. Podes. Mesmo que haja várias pessoas ou preconceitos a tentarem dizer-te o contrário. Felizmente vivemos numa sociedade em constante evolução e o lugar da mulher é onde ela quiser. Até no Tinder a procurar alguém com quem sair no fim-de-semana se for isso que ela quer. Ou a recusar o Tinder e a estar sozinha no fim-de-semana se for isso que ela quer.

Por isso, sim, uma mulher pode querer algo casual. Tal como pode depois mudar de ideias e já não querer. E definitivamente temos, em conjunto, de encarar isto com naturalidade. Está tudo bem. Porque todos temos uma persona ali. Todos acabamos a ser alguém diferente. Umas vezes somos mais nós próprios, outras vezes ficamos irreconhecíveis…

2 Replies to “desengatados: ser mulher numa dating app”

  1. Não me cansarei de dizer que acredito que estás a fazer um trabalho extraordinário com esta série – e ainda bem que avançaste com a ideia -, porque ajuda a desmistificar certos aspetos da dating apps, sobretudo, quando há uma partilha mais próxima. Portanto, sem querer diminuir qualquer um dos episódios anteriores, este, para mim, é um dos mais, porque a dualidade de critérios ainda é uma realidade e porque as pessoas precisam de compreender que é válido procurarmos relações sérias ou casuais

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