aquele em que quase publiquei um livro

 

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Até ao momento, não estou fã dos 29. Estes primeiros dez dias estão a ser dolorosos (e não me refiro apenas às dores de dentes). No espaço de duas horas, no mesmo dia, tive uma entrevista em que me senti altamente desrespeitada e tive a confirmação de algo que temia há meses. Vi-me com um manuscrito na mão e um contrato cancelado sem saber exatamente como ou se devia reagir. Acabei a seguir pela única solução que englobava tratar das dores de dentes, das dores editoriais e das dores profissionais em conjunto: desliguei e decidi que a raiva e a negação não funcionavam, por isso tinha de entrar na fase da depressão. Só que agora preciso de deixar de sentir pena de mim mesma e passar à fase da aceitação e sei que só vou conseguir se escrever.

E se fosses um prodígio?

Quando venceu o Prémio Leya, em 2014, o Afonso Reis Cabral tinha 24 anos. Até à data, era a pessoa mais nova a quem era atribuído o prémio. Nessa altura, o Afonso dizia que sentia que, aos 24, já ia tarde para a literatura. Durante muitos anos eu própria sentia que ou mostravas o teu talento cedo — o mais cedo possível — ou já não era a mesma coisa. Um escritor que se revela um êxito de vendas ou vence prémios antes dos 30 é um jovem escritor. Depois dos 30 só é um escritor, já não é tão surpreendente, já não é tão importante.

Publiquei o meu primeiro livro aos 18 anos e o segundo aos 19. Era uma jovem escritora. Quando a Câmara Municipal de Trancoso me homenageou numa cerimónia com outras pessoas do concelho ligadas às artes eu era uma jovem escritora. Tão jovem que os homens mais velhos se achavam no direito de me interromper e tratar como irrelevante. Ser uma jovem escritora era bom. Era ser recebida com aqueles olhares esperançosos de que ainda ias crescer muito e fazer coisas incríveis e isso tudo ia acontecer enquanto eras uma jovem escritora.

Mas há algo que é inevitável: crescemos. Aos 25 ainda podemos ser jovens escritores, mas depois dos 25 somos cada vez menos jovens e muita gente já se esqueceu de que somos escritores.

Quando tinha 23 anos terminei o meu terceiro livro. Ainda era jovem, sentia-me novamente escritora, enviei-o a várias editoras. Tentei novamente aos 24. Vieram os 25. Fiz uma série de contos gratuitos online. Ainda podia ser uma jovem escritora. Veio a pandemia. Vieram os 26, os 27, os 28. Já não sou bem jovem, embora ainda seja escritora.

Aceitar a irrelevância

Durante os primeiros anos após publicar o meu segundo livro era constantemente abordada sobre o terceiro: Quando vem? Estás a trabalhar nele? Embora não fosse confortável levar com tantas perguntas sobre um livro que estava a ser difícil conseguir escrever, foi pior quando as perguntas pararam e percebi que, na verdade, tinha chegado a um estado pior: a irrelevância.

Claro que ainda me fazem perguntas sobre o terceiro livro, mas são as pessoas que já me conheciam naquela altura. E agora já não me perguntam quando vem, perguntam se vem. Já não perguntam se estou a escrever, perguntam se ainda escrevo. E juro que sempre que alguém se cruza comigo na rua e me pergunta se ainda escrevo tenho uma vontade gigante de chorar.

Quando eu publiquei livros foi algo muito mais offline. O bookstagram era irrelevante, fui sempre muito mais dedicada à promoção offline do que online. Os tempos mudaram, mas continua a existir esta pequena diferença: há pessoas que simplesmente não acompanham as mil e uma coisas que eu escrevo online, mas acompanharam as coisas offline. E há pessoas que só acompanham aquilo que eu escrevo online e já nem se lembram de que, em tempos, podiam ler-me de outra forma. Eu dizer a alguém offline que tenho contos na internet provavelmente não me serve de nada, tal como eu dizer online que publiquei livros também não serve de nada porque eles saíram de circulação.

Hoje, é importante ter uma presença digital, deixar que as pessoas nos conheçam, que conheçam o nosso trabalho e que criem uma relação com a nossa escrita ao ponto de se poderem interessar nela caso exista um livro. Mas também é importante ter uma presença para lá do digital. Lembrar as pessoas que nos conhecem — seja de que forma for — de que escrevemos e que nem sempre nos vão ver a escrever num livro, mas que escrevemos noutros sítios e é escrita na mesma.

No entanto… parece que se não é um livro físico não conta, é irrelevante. Então temos de aceitar a irrelevância. Assumir que escrevemos, mas provavelmente não vamos ser lidos por muita gente porque isto não é o mesmo que ter um livro numa livraria.

Estava quase a conseguir…

No ano passado comecei a trabalhar noutro livro, ainda com aquele manuscrito terminado aos 23 anos a queimar na gaveta. Um dia havia de chegar a vez dele. Sempre achei que pegaria nele e o trabalharia novamente antes de voltar a tentar editoras. Acabou por surgir a oportunidade de o enviar a uma editora, mas não tinha tempo para o trabalhar antes. Foi como estava há mais de três anos.

Quando enviei o original tinha três certezas:

  1. a história era boa;

  2. queria trabalhá-lo bem na edição;

  3. era o livro certo para mostrar a minha evolução como escritora que já não era assim tão jovem.

Tinha plena confiança neste livro — ainda tenho. Enviei-o e não fiz parte da seleção inicial da editora, mas em maio soube que iria fazer parte do catálogo. Tinham passado cinco anos desde que eu terminara a primeira versão e parecia que estava finalmente a chegar a hora de isto deixar de ser algo hipotético, algo que vivia unicamente nas pastas do meu computador e nas conversas de sonhos. Ia ser publicado antes dos 30, ainda ia ser uma jovem escritora, mais ou menos.

Desde que terminei a tese dediquei-me exclusivamente a ler, reler e editar este livro. O meu Notion encheu-se de ideias e pormenores que poderiam ser explorados. Eu e os meus amigos imaginámos capas, imaginámos formas de promoção, imaginámos simplesmente pegar neste livro e vê-lo ser algo.

Mas a vida aconteceu.

Soube na segunda-feira que o meu contrato seria cancelado e a editora encerraria no prazo de um mês.

Não vou dizer que não tive pensamentos egoístas, porque tive. Os meus primeiros pensamentos foram totalmente egoístas e focados unicamente no que aquela informação significava para mim e para o meu trabalho.

Mas depois vieram todos os outros.

Não há almoços grátis… nem livros

Ter uma editora independente em Portugal é um desafio financeiro. É por isso que ir por modelos de publicação totalmente financiada pelo autor é algo rentável para a editora: o dinheiro entra de qualquer maneira. Entre revisões, paginações, capas, impressões, distribuições… isto é caro. E apostar em escritores portugueses novos é saber que o investimento pode não ter tanto retorno. E, claro, há uma limitação que muita gente parece não compreender: aquela coisa incrível de receber livros grátis da editora pode não acontecer.

Acho que ainda há um desconhecimento flagrante do mercado editorial português por parte das pessoas que querem trabalhar nele (sejam escritores sejam criadores de conteúdo literários) e há que perceber que não há almoços grátis… nem livros.

Pensei em tudo isto depois.

Pensei em quem arrisca por um sonho e cria uma editora independente e tradicional em Portugal. Pensei em quem vê esse sonho cair. Pensei em quem defende métodos de publicação em modo financiamento total do escritor. Pensei em quem não consegue um lugar numa editora tradicional maior porque ainda não é uma aposta segura. Pensei em como tudo isto é triste, tão triste.

Aquele em que quase publiquei um livro

Foi quase. Quase publiquei o Vinte e Um. Quase. Tentei ter sorte num jogo de azar e perdi. Acontece a tantos de nós. Tentamos e não temos respostas. Tentamos e recebemos nãos. Tentamos e pedem-nos para pagar a edição. Tentamos e quase conseguimos. Quase conseguir é duro.

Perguntaram-me o que ia fazer, já que passei tanto tempo investida nisto nos últimos meses, e eu não sei. Aquilo que sei é que não tenho dinheiro para pagar autopublicação nem para financiar editoras que se dizem tradicionais. Mesmo que tivesse esta última nunca seria uma opção para mim. Também sei que é final de ano e, por isso, a maior parte das editoras já tem o calendário de publicação do ano que vem fechado. E sei que vou trabalhar noutro livro nos próximos tempos.

Não sei quando ou se algum dia publicarei o Vinte e Um. Não sei quando ou se algum dia publicarei outra coisa qualquer. Mas sei, sei há muito tempo, que vou sempre escrever. Quer me leiam na internet quer não me leiam em lado algum. Quer possa ser uma jovem escritora, uma escritora, ou coisa nenhuma. Mesmo que o mercado doa, a única certeza é a de que vou escrever.


2 Replies to “aquele em que quase publiquei um livro”

  1. Fiquei de coração partido ao ler este post. Mas não desistas! O Vinte e Um terá o seu lugar no mundo e não apenas nas gavetas aí de casa. Estou a torcer muito por isso e tenho a certeza que vai chegar a vez dele!
    Continua a escrever. Estaremos cá para te ler 💜

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