O que te leva a enfrentar o mar
Deixar p’ra sempre o amor da tua terra
A renascer sem querer noutro lugar
Nunca te esqueças de onde vens, e que no fim
Vais longe, adeus, adeus
Vais longe, adeus, adeus
Quando fui viver para Lisboa, há quase onze anos, tive vários choques culturais. Eu sei, parece uma ideia estranha. Afinal, nasci e cresci em Portugal, numa família em que, apesar de haver pessoas emigradas noutros países da Europa e até primos angolanos, todos eram mesmo dali. Não havia multiculturalidade. Nascidos e criados naquela aldeiazinha perdida no interior beirão português. Então, se éramos todos tão portugueses, por que é que Lisboa me provocava tantos choques culturais?
De repente havia mais sítios onde me sentir insegura, havia supermercados abertos até mais tarde, toda a gente falava tão baixo, um palavrão era o fim do mundo, parecia possível ver-se de tudo: um rapaz entrar com uma máscara estranha no metro, pessoas a ressonar no suburbano da linha de Sintra, bêbedos às oito da manhã, indianas com sáris tão bonitos que apetecia tocar, muçulmanas a quem dava vontade de perguntar se não morriam de calor com o cabelo debaixo do hijab. Na primeira vez em que vi um casal homossexual beijar-se na rua em Lisboa imaginei o choque que seria se aquela rua fosse em Trancoso.
Um mês e meio antes de sair de vez de Lisboa, em 2019, chorei copiosamente na estação do Oriente durante uns bons vinte minutos. Não tinha conseguido apanhar o Intercidades habitual e o único comboio que havia até ao dia seguinte era o que ia para Madrid e que já não tinha qualquer lugar. Naquele momento lembro-me de pensar repetidamente, num descarregar de adrenalina e ansiedade: não quero estar aqui, quero ir embora, quero ir para casa, só quero ir para casa, quero a minha casa, isto não é a minha casa. Passaram por mim dezenas de pessoas no tempo em que estive sentada no chão a chorar, com uma mala de viagem a servir de suporte emocional*. Depois de ter parado de chorar e ter assumido que apanhava o primeiro comboio do dia seguinte lembro-me de me perguntar o que teriam pensado aquelas pessoas sobre a miúda de 24 anos que chorava no chão. E depois lembro-me de me perguntar por que motivo nenhuma delas tinha parado ou sequer hesitado.
Foi o momento em que compreendi por fim que o choque cultural de uns anos antes continuava a existir porque aquela não era a minha terra. Eu não era dali, só podia estar ali de passagem. Lisboa era demasiado solitária para alguém tão solitário quanto eu.
Confesso que, ainda assim, vivi num paradoxo até me mudar para a Maia. Costumava dizer que era um bocado como o António Variações e só estava bem onde não estava: se estava na terra que me viu crescer não queria estar lá, se não estava queria estar. Não parecia ter um equilíbrio e nunca encontrei ninguém que conseguisse entender isto de forma a conseguir explicar a mim própria este sentimento tão complexo de já não se saber bem de onde se é.
Quando caminho pela minha aldeia ou por Trancoso tudo me é familiar, noto cada pequena diferença de visita para visita, mas já não sou dali. No fim-de-semana fui votar e ia plenamente consciente de que era uma das últimas vezes em que votava ali. Não estou lá todos os dias e não quero estar, mas preocupo-me com ela como se estivesse. Mas já não sou dali.
Só que quando caminho pelo Porto ou pela Maia também sei que ainda não sou bem daqui. Sempre que me pedem indicações e as sei dar sem qualquer hesitação ou sempre que vou a algum lugar sem precisar de seguir o GPS sinto-me um bocadinho mais daqui, mas não tenho a tradição da regueifa todos os domingos, não sei dizer facilmente qual é o melhor sítio para comer francesinhas e há expressões que não sei o que significam. Não sou bem daqui.
Então sou de onde?
Quando ouvi o Afro Fado, do Slow J, pela primeira vez senti algo que só compreendi depois de muitas vezes. Parecia-me estranho que um álbum sobre identidade, principalmente na realidade que é a do Slow J — a de alguém que tem ascendência birracial e, por isso, bicultural —, estivesse a chegar a tanta gente que se calhar só tem um país na sua linhagem e nunca viveu fora da sua terra. Mas depois percebi o que se passava — é a identidade. Ao longo da vida vamos tendo várias crises de identidade (não é à toa que o meu podcast tem esse título) e nos últimos anos temos andado a tentar perceber quem somos no lugar onde estamos.
Não, não consigo sentir tudo o que a música do Slow J quer dizer ao mundo, mas é interessante pensar que, ainda assim, encontro nela tantas coisas que senti desde que deixei a minha aldeia há tanto tempo. Ser de dois lugares e ser de lugar nenhum. Não ser bem de um lugar nem do outro. Ser feito de dois bocados que até podem parecer contraditórios, mas que nos tornam inteiros.
Nunca vou saber o que é que sentir exatamente o que o Slow J sente, nunca vou ser uma mistura de Afro e de Fado. Mas na busca pela identidade que junta ambos de forma tão bonita e perfeita, sei exatamente o que é ser a mistura de duas coisas, sei exatamente o que é procurar-me em dois lugares e sentir que sou um bocadinho de ambos, mas não me encaixo totalmente em nenhum.
Há dias em que me sinto mais daqui, em que a pronúncia já não me deixa mentir e em que tudo aqui não é só familiar, mas é meu, da minha terra. Há dias em que me sinto mais de lá, em que a Serra da Estrela ao longe me serve de ponto cardeal e tudo é obviamente conhecido porque é meu, da minha terra. Não sou mais daqui quando estou cá nem mais de lá quando estou lá. Às vezes estou lá e sinto-me muito mais daqui ou estou aqui e sinto-me muito mais de lá. Há dias em que só queria estar lá e há dias em que só quero estar aqui.
Sou um bocado de lá. Sou das sardinhas doces, das castanhas assadas, dos vizinhos que partilham os excessos das colheitas, dos pássaros que cantam sem pensar em mais, da vista para a Serra, do queijo da Quinta das Pousadas, das pessoas que falam de uma rua para a outra como se estivessem lado a lado, da pronúncia beirã, da falta de rede móvel, do ir de carro para todo o lado, das pessoas que conhecem toda a gente, da fruta e dos legumes que têm mesmo o sabor que deviam ter.
Sou um bocado de cá. Sou das francesinhas, da regueifa ainda quente com manteiga, dos vizinhos que nem se conhecem, das ruas que parecem só sossegar de madrugada, dos horários alargados, dos bês que seriam vês, dos golos festejados no meio da rua, do deixar o carro em casa e ir de metro, de passar por centenas de pessoas e não dizer bom dia a nenhuma, da solidão que nos passa ao lado porque não é nossa.
Seria outra se não fosse um bocado de cá e um bocado de lá. Mas de onde sou mesmo? Não sei bem. Talvez seja de dois lugares e não seja de lugar algum.
*Sempre que alguém fala do livro By Grand Central Station I Sat Down and Wept eu sou automaticamente remetida para aquela noite de final de outubro. Troquem Grand Central Station por Oriente Station e podia ter sido eu.
Acho que és do mundo 🙂