entre nós e as palavras o amor. seja o que for o amor.

Tantos anos depois, cá nos encontramos. Vou escrever-te isto e espero que, no final, compreendas o motivo pelo qual te quis escrever. Acredito que compreenderás e perdoarás ter tanto para te dizer agora.

O amor fascina-me. Sinto que todos o procuramos e todos o sabemos definir, mas ninguém o procura nem o define da mesma forma. Os Foreigner queriam saber o que era o amor e parecia meio foleiro alguém dizer assim, para o mundo, que queria saber o que era o amor, mas, no fundo, acho que todos torciam para que eles descobrissem e partilhassem uma definição universal. Sim, já sei, vais dizer-me que há definições universais de amor e que as encontro facilmente no dicionário. Mas achas mesmo que é o dicionário que te explica o que é o amor?

Admito que sempre que falo em amor há algo que me surge de imediato em pensamento: seja o que for o amor. Já passaram muitos anos, mas continuo a acrescentar mentalmente um seja o que for o amor quando falo de amor. Sei mais sobre ele agora, pelo menos sei mais um bocadinho, mas recuso-me a defini-lo e às vezes acredito que, até ao fim dos dias, andarei numa procura de significados para esta palavra e nenhum deles será definitivo. É a magia do amor.

Quando tinha dezoito anos escrevi uma grande carta de amor ao amor adolescente. Era uma carta de despedida, como alguns tão bem o interpretaram, mas de despedida de quê? Despedida de quem? Agora, dez anos volvidos, acho que era uma despedida daquelas pessoas, daquelas versões de nós, daqueles sentimentos. O amor nunca voltaria a ser tão simples como naquele tempo. Também sei que não lhe podia chamar outra coisa a não ser amor — seja o que for o amor. Porque tendemos a ter medo de falar de amor e a glorificá-lo de tal forma que tem de ficar reservado a relações muito específicas e muito adultas e só pode ser de determinada forma. Mas o amor é tão mais do que um papel que se assina, do que uma palavra que se diz por hábito.

Claro que, para aquilo que eu te diria que é o amor hoje, aquilo não era amor. Mas na altura talvez fosse porque correspondia à definição de amor que tens com aquela idade, com aquelas vivências. A questão é que aquilo não era uma carta de amor para outra pessoa. Percebi depois que era uma carta de amor a mim mesma. À pessoa que fui, era e ia deixar de ser. Quando aquele livro entrou pelas bibliotecas dentro já não havia amor por outra pessoa, apenas uma grande vontade de ir viver outras histórias para outros lados.

Confesso-te que acho estranha a resistência que as pessoas parecem ter agora ao amor. Reclamam de um artista que só canta sobre amor, de um autor que só escreve sobre amor, de um filme que só se foca no amor. Não sei se é aversão, incompreensão ou solidão. Vêem-se cada vez mais artigos de opinião e até estudos científicos sobre como esta geração vê e vive o amor e acho que teríamos tido belos momentos de divagação se tivéssemos, naquela altura, imaginado que a tecnologia se ia meter tanto nas relações. Na altura ainda acontecia tudo muito mais presencialmente e nem trocávamos assim tantas mensagens. Houve o quê? Duas ou três vezes em que conversámos até perto da uma da manhã? Agora isso acontece sempre que não adormecemos a meio de uma troca de provocações. Bem, também não havia provocações naquela época.

Quando penso em amor agora — seja o que for o amor — não penso em nada daquele tempo. Penso noutras coisas, coisas essas que fui aprendendo neste tempo. Passaram dez anos, acreditas? Agora o amor partilha-se entre música funk e desejos carnais. Já não servem apenas abraços e jogos de Pro Evolution Soccer. Agora há respostas honestas e explicativas. Já não servem frases feitas e entrelinhas que não sabem ao certo o que significam. Mais do que isso, o amor vive agora muito mais nas ruas do que nas páginas vazias que dizíamos ter de encher.

Quando penso naquele 19 de abril de 2014, no entanto, não penso tanto nestes tipos de amor; penso, sobretudo, no amor pela escrita. Sabíamos que seria o único a sobreviver ao terramoto dos anos que viriam, certo? Mas não sabíamos que nunca mais seria na mesma. Será que teríamos feito as coisas de forma diferente? Será que teríamos sucumbido à pressão que colocámos em nós? Será que teríamos feito mais ou menos?

Escrevi há pouco tempo um diálogo onde digo algo como «Passas dois anos sem publicar e é aceitável. Três cria saudades. Quatro vem com perguntas. Mas cinco? Seis? Tornas-te esquecível. Tornas-te uma daquelas pessoas que dá dicas sobre escrita e publicação, mas que deixou de publicar.» Não estava a falar de nós diretamente, mas estava com a nossa experiência muito presente. Felizmente, deixámos isso de dar dicas sobre escrita e decidimos ficar-nos por partilhar apenas a nossa experiência sem que isso tente ser uma maneira de dar dicas. Não temos dicas a dar, só temos histórias para contar.

Como escrevi isto, queria pedir-te desculpa. Sei que, para ti, ainda é possível. Ainda acreditas que daí a três anos vais ter uma boa história publicada numa editora tradicional. Ainda achas que vais chegar aos trinta com mais dois a três livros publicados numa editora tradicional. Por isso desculpa. Acho que te falhei nisso. Quer dizer. Quatro anos depois tiveste um livro terminado — e bom. Sei que é bom porque o discernimento mo diz e porque uma das rejeições de editoras tradicionais grandes que recebi não veio de um valente silêncio, mas sim de um a história é boa, mas. Só que, bem, a não ser que publique dois livros nos próximos seis meses já não vou a tempo daquilo com que sonhavas. Às vezes acho que já não vou a tempo de nada do que sonhaste.

Espero que compreendas. Soubemos no dia 19 de abril de 2014 que nunca mais pagaríamos para publicar e sabíamos que ia ser difícil chegar a outras editoras. Não sabíamos que seria tudo tão difícil. Que ia haver um livro inteiro finalizado, que ia haver uma série de contos, que ias tirar aqueles livros do mercado, que ia haver uma série digital em áudio, que ias ter quase um livro publicado e a editora acabaria a fechar, que ias chegar aqui e ter uma carta escrita para ti como aquelas que tu escreveste em tempos.

Não te preocupes. Sei que passaram dez anos. Aqueles livros já não contam. Quem sabe já não se importa, quem não sabe não quer saber. Podias fazer como alguns e dar outro nome, mas este é o teu nome, esta é a tua história. Passaram dez anos e há algumas coisas que sei hoje que não tinhas como saber na altura. A primeira delas todas é que estes dez anos iam ter muitas lutas diferentes. A segunda é que definir amor continua a ser difícil. A terceira é que o único amor que precisavas mesmo de conhecer na altura era o amor pelas palavras — é o mesmo amor que conheço agora e que certamente continuarei a conhecer durante muitos anos. Tudo o resto, todas as dores de crescimento de coisas que não foram amor, de pessoas que não sabem viver com amor, de silêncios editoriais ou de escreves muito bem, mas, tudo isso continua a alimentar o amor pelas palavras — alimenta-o na raiva, no luto, nas lágrimas, no medo, na desilusão.

Perdoa-me não ter conseguido tudo, mas espero que te tranquilize saber que acima de tudo ficaram as palavras e por elas tenho lutado sempre. Entre nós e as palavras sabes que foi, é e sempre será amor. Seja o que for o amor.

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