juntar a arte ao artista

Este texto saiu primeiro na newsletter do daylight.

[…] It brought me to the conclusion that I need to be very transparent about my actual plans for this election as a voter. The simplest way to combat misinformation is with the truth. // I will be casting my vote for Kamala Harris and Tim Walz […] because she fights for the rights and causes I believe need a warrior to champion them. I think she is a steady-handed, gifted leader […] standing up for LGBTQ+ rights, IVF, and a woman’s right to her own body for decades. // I’ve done my research, and I’ve made my choice. Your research is all yours to do, and the choice is yours to make. […]

— Taylor Swift, Childless Cat Lady, no Instagram, a declarar apoio aos democratas para as eleições presidenciais nos Estados Unidos, que acontecem em novembro.

 

[…] I wanted to clear the air about something that happened a while back. // Several years ago, I was asked to support someone I considered a friend at a court appearance. […] Soon after, I realized I shouldn’t have. I always try to see the good in people, and I misjudged him. […] To say it as clearly as possible: I do not condone abuse or violence against women and I empathize with the victims of those crimes.

— Emily Armstrong, a nova vocalista dos Linkin Park, a justificar, nas histórias do Instagram, várias notícias que surgiram sobre ela após ser anunciada como vocalista da banda. As notícias ligam-na à Cientologia e indicavam que ela seria amiga de Danny Masterson, o ator de That ‘70s Show que foi detido em 2020 e condenado a 30 anos de prisão pela violação de duas mulheres — o ator que a Mila Kunis e o Ashton Kutcher defenderem em carta e que os obrigou a um vídeo de desculpa.


Não é todos os dias que os meus artistas preferidos me presenteiam com assuntos interessantes sobre os quais escrever, mas aparentemente quiseram compensar e decidiram que terem assunto novo nos mesmos dias era uma ótima forma de viver. Não, ainda não vou falar sobre os Linkin Park terem uma nova formação, nova tour e novo álbum a caminho — ainda não o consigo fazer com plena consciência.

No entanto quero pegar em algo sobre a Emily Armstrong, a nova vocalista, e juntá-lo a algo sobre a Taylor. Acho que, no final, fará sentido. Em vez de separar a arte do artista, desta vez quero juntar a arte ao artista. É disto que se trata quando falamos de responsabilizar os artistas pelas suas ações ou pela nossa interpretação das suas ações, certo?

A relação dos fãs com os artistas e a sua arte está a ir longe demais?

 Estamos sempre a voltar à mesma conversa, mas o crescimento das redes sociais teve mesmo um grande impacto no mundo, talvez mais do que consigamos perceber. Regidos por algoritmos com agendas próprias, é cada vez mais comum ter algum tipo de experiência coletiva só por sermos fãs de um artista: o Facebook dá-nos distintivos de maior fã, o TikTok enche-se de pessoas a fazer vídeos só sobre um artista, as histórias do Instagram vêm com a mesma banda sonora, sugerida no top de reproduções.

Quando comecei a usar redes sociais, há cerca de mil anos (ou 17, pronto), aderíamos a grupos de fãs no MySpace, escrevíamos no hi5 que músicas e artistas ouvíamos e, com sorte, tínhamos alguma interação no MySpace. Lembro-me de que criei Twitterunicamente para poder seguir os Linkin Park. Foi na altura em que as redes começaram a proliferar: Twitter, Facebook, Tumblr. A partir daí foi sempre a crescer.

Curiosamente, tanto Linkin Park como a Taylor utilizavam muito as redes sociais e a internet para se aproximarem dos fãs. Com os Linkin Park havia (e há) o LP Underground, que permitia acesso a salas de chat com outros fãs e, muitas vezes, com os próprios elementos da banda.

Há uma grande diferença entre os Linkin Park e a Taylor nesta relação com os fãs, que vai além da forma como cada um se ia relacionar com eles: os LP tiveram, desde cedo, muitas músicas de crítica social e política na discografia. Claro que, aqui, há outros fatores a ter em conta, incluindo os géneros musicais em que se inserem, mas é certo que o facto de partilharem mensagens políticas (álbuns como Minutes to Midnight ou A Thousand Suns mostram-no claramente) também influenciou o tipo de relação que foram criando com os fãs. Havia proximidade, meets and greets regulares, mas também alguma cautela. Afinal, estamos a falar de uma banda rock que surge já com os elementos na casa dos 20 anos, ainda em fases preliminares da internet.

A relação da Taylor com os fãs não vem da mesma forma. Ela era uma adolescente quando a internet e as redes sociais começaram a proliferar-se, por isso era expectável que ela as fosse usar como qualquer adolescente: partilhas constantes, momentos quase diarísticos. A própria música dela era quase diarística. De posts no Tumblr,respostas a comentários e até as famosas secret sessions, em que alguns fãs eram convidados a ouvir um álbum novo na casa da Taylor*,* a internet alavancou a relação da Taylor com os fãs de uma forma tão peculiar que acredito que ela própria se questione sobre o bom e o mau que daí adveio.

Aquela sensação que temos, em pequena escala, de que conhecemos as pessoas que seguimos na internet é amplificada no caso dos artistas. Assumimos que sabemos tudo sobre eles e meio que parecíamos incentivados a isso. No entanto, tal como tudo na vida, há um limite entre o que é uma relação normal e saudável com algo e o que já é exagero. Honestamente, às vezes não parece comportamento de fã — parece comportamento de bully. Comentários sobre o peso que ganham ou perdem, sobre a verdadeira essência do artista, sobre o que outro membro da banda acharia sobre X, sobras as relações amorosas ou de amizade… até que ponto há, de facto, legitimidade para se comentar assim a vida dos artistas que seguimos?

Há umas semanas vi uma publicação da Chappell Roan que me despertou curiosidade. Num carrossel de sete slides, a cantora falava sobre um certo assédio que sente por ser artista. Não a acompanho por isso não sei até que ponto ela é assediada, mas consegui transpor logo isto para a relação de alguns grupos de fãs com os artistas que admiram.

Nesta publicação, ela dizia coisas como: «I chose this career path because I love music and art. […] I do not accepet harassment of any kind because I chose this path, nor do I deserve it.»

Depois explicava que no palco ela está no trabalho e que acha que uma mulher não tem de explicar o motivo pelo qual não quer que lhe toquem. É aqui que ela diz algo fundamental:

I am specifically talking about predatory behavior (disguised as “superfan” behavior) that has become normalized because of the way women who are well-known have been treated in the past. Please do not assume you know a lot about someone’s life, personality, and boundaries because you are familiar with them or their work online.

Nos últimos anos acho que isto é cada vez mais comum. Basta entrar no Instagram ou no TikTok e há alguém pronto a explicar tudinho sobre determinado artista com mais certezas do que aquelas que eu tenho sobre a minha própria vida. Porquê? Porque obviamente conhecem muito bem o artista em questão e, por causa disso, é também óbvio que o artista lhes deve explicações: por que motivo acabou a tua relação? Como te atreveste a arranjar um novo vocalista para a tua banda? Porque é que ganhaste peso? Porque é que fizeste preenchimento facial? Porque é que continuaste com a banda?

Enquanto uns perguntam, outros não terão problemas em dar as respostas que têm a certeza conhecer.

E se exigem respostas sobre estas coisas mais mundanas, como não irão exigir respostas sobre os assuntos que realmente importam: que partido vais apoiar nas eleições? Estás do lado de pessoas condenadas por violação?

Porque é que já não é só uma questão de apreciar a arte?

 

Quando a Taylor começou a mostrar a sua posição política foi um momento sem retorno. Tornar explícitos os seus valores morais e colocar-se contra o presidente americano da altura era mais do que uma mera declaração de interesses — era mostrar que ter uma plataforma que chega a milhões de pessoas pode também ser útil para promover mais do que música.

Com o crescimento de radicalismos e também com um ganho de consciência sobre questões sociais, criou-se uma maior necessidade de perceber de que lado estão as pessoas que admiramos. Podemos dizer facilmente que é preciso separar a arte do artista quando consideramos a arte boa, mas o artista tem comportamentos duvidosos ou expressa opiniões diferentes das nossas, mas aquilo que queremos mesmo é encontrar a nossa tribo, os artistas que nos representam e que defendem as mesmas coisas que nós defendemos.

Se calhar já estamos novamente numa zona cinzenta da relação fã-artista, mas também penso na música de protesto e percebo que as pessoas se ligavam àqueles artistas porque eles defendiam o mesmo em que acreditavam.

Ter a Taylor a defender direitos igualitários para a comunidade LGBTQ+. a falar sobre feminismo e a mostrar que estava a tentar educar-se sobre aquilo em que acredita é o tipo de exemplo que queremos dos artistas que apoiamos e foi, à época, totalmente necessário. Era cada vez mais necessário perceber de que lado da barricada se encontravam as pessoas.

No entanto acho que houve aqui uma falha de comunicação grave: algumas pessoas assumiram que, com aquele ponto de viragem, a Taylor passaria a falar sobre política regularmente, tornando-se quase ativista.

A sensação que tenho é a de que, nos últimos anos, se tem tornado cada vez mais comum querer saber as crenças sociais e políticas dos artistas, mas também exigir-lhes essas posições, como se, de facto, fosse necessário um discursos explícito para podermos compreendê-los.

Não tenho estudos para sustentar e compreender este fenómeno, mas acredito que ultrapassámos a era do separar a arte do artista para entrarmos nesta era complicada do a arte é o artista e o artista é a arte, em que temos de uma relação para-social com os artista que seguimos e lhes exigimos posições sociopolíticas e os responsabilizamos por erros — ou por aquilo que consideramos erros. Já não é só querer saber porque é que o namoro acabou ou porque é que já não é amigo de X ou Y. É querer saber que minorias defendes, onde estás na luta pelos direitos das mulheres, como te posicionas em relação ao que as pessoas com quem te dás ou deste dizem ou fazem.

Tu és aquilo que defendes: e se não defendes nada?

 

Ganhar consciência política e social é um processo complexo e cada um de nós terá passado por ela de forma diferente. O meio em que crescemos, as pessoas que nos rodeiam, aquilo que vemos ou lemos… há tanta coisa que vai influenciar a nossa relação com a política e até o facto de termos uma relação com a política que vá além de saber o nome dos partidos.

Algo de que gostei particularmente no Miss Americana, o documentário que a Taylor fez em 2020 para a Netflix, foi perceber que, entre as várias mudanças que tinham acontecido na vida dela, o ganho de consciência política era uma delas. Perceber como o sistema de crenças em que cresceu a moldou, como o machismo a limitou e como a arte tinha de ser importante o suficiente para ela ter medo de pisar o risco. Só por ser mulher, ela tinha uma série de limitações nas quais pensar antes de se pronunciar, algo que, acredito, uma banda rock como os Linkin Park como teve.

Como alguém que também tem feito a sua educação social e política, ver esta evolução da Taylor foi positivo e motivador. É como se fosse um indicador de que este é um tipo de educação constante — vamos sempre a tempo. Também percebi a importância desta ligação ao que os artistas defendem. Aproxima-nos um pouco quando defendem o que também defendemos, mas afasta-nos por completo quando defendem o oposto.

No entanto nunca esperei ter a Taylor a pronunciar-se sobre todos os assuntos políticos. Não é responsabilidade dela nem me parece seguro. Em primeiro lugar, ninguém tem opiniões sobre tudo; em segundo lugar, ela não é politóloga ou comentadora política; em terceiro lugar, já olharam para o mundo em que vivemos?

A Taylor lida constantemente com perseguidores e teve, este ano, datas da tourcanceladas por ameaça terrorista. Parece brincadeira? É que a mim não. É importante falar, mas estar seguro também e às vezes é preciso preparar muito bem o que se vai dizer para não se levar com ameaças de segurança. Embora ainda nos possamos lembrar dos posts de Tumblr que pareciam de uma amiga, temos de ter noção de que é uma mulher-fenómeno global*,* feminista-em-construção e que defende direitos LGBTQ+. Há muitos grupos radicais que diriam que ela é uma ameaça. Claro que ela não tem de nem pode ou deve pronunciar-se sobre tudo.

Nesta relação para-social que eu própria criei com a Taylor, não me parece necessário ela estar sempre a dizer quais são as suas visões políticas. A miúda meteu You Need To Calm Down na setlist da Eras Tour — duvido de que o tenha feito por a música ser incrível (não é). Do mesmo modo, não acho que ela tenha de ser responsabilizada por aquilo que os amigos do namorado dizem ou defendem quando ela não diz ou defende o mesmo. Se acho que podia dar-se com pessoas melhores? Claro, mas ela é amiga da Blake Lively há anos e não é a minha opinião que irá mudar isso ou as amizades estranhas do Travis. É que — choquem-se — no final do dia aquela é a vida dela, não é a minha. Ela (ou outra pessoa) não pode mandar bitaites sobre a minha vida, porque raio é que eu hei-de fazer isso sobre a vida dela?

Ah, mas diz-me com quem andas dir-te-ei quem és — sim, e aí eu concordo parcialmente. Os meus amigos não têm as mesmas crenças que eu em tudo. Aliás, sempre tive amigos de classes sociais superiores à minha, por exemplo. No entanto acho, sim, que pode fazer com que haja uma responsabilização maior em relação ao que defendem. Foi o que aconteceu com a Emily Armstrong.

Colocando de lado a questão da Cientologia, ela esteve numa audiência preliminar do Danny Masterson com o intuito de, possivelmente, o defender. Acabou por não o fazer, mas eu percebo que os fãs dos Linkin Park quisessem saber a posição dela em relação ao caso e à violência sexual. Por um lado, porque é uma boa definição de caráter — dentro do que é possível conhecer de um artista —; e por outro porque há um historial na banda — o Chester foi vítima de violência sexual em criança.

Mais uma vez, a minha relação para-social com a banda — apoiada numa certa lógica — diz-me que os Linkin Park sabem bem quem escolheram para a banda e não escolheram a Emily sem tirar a limpo todas estas questões. Se podemos questionar a qualidade dos amigos que escolhe? Podemos, mas a partir do momento em que se distancia já não é responsabilidade dela responder por crimes de pessoas que conhece.

Esta falsa sensação de proximidade que se criou com os nossos artistas favoritos tem muito de bonito, mas também tem muito de perigoso. Quer-se cada vez mais amplificar esta sensação de que somos amigos, de que conhecemos mesmo bem os artistas que seguimos, queremos saber o que pensam sobre as questões que nos preocupam porque queremos sentir que têm as mesmas preocupações, queremos que se posicionem para nos sentirmos mais apoiados nas nossas posições. Mas será que o podemos exigir a torto e a direito? Será justo pedirmos aos artistas que justifiquem as atitudes dos que os rodeiam? É que, no fim do dia, nós não sabemos a realidade de todos os factos.

No entanto se não responsabilizarmos os artistas pelas suas atitudes então estamos a dizer que eles têm de ter um tratamento diferente, que são intocáveis — e não são.

Não há como ter uma resposta universal, porque é claro que exigimos muita coisa que não devíamos exigir e claro que não pode ser o voto de um cantor a decidir o nosso, mas se aquele artista é o nosso lugar seguro é claro que queremos que ele o seja em tudo.

Antes de ela o fazer, disse a um amigo que queria que a Taylor mostrasse o seu apoio a Kamala Harris. Não por ser a Kamala Harris porque nem a acho uma candidata assim tão forte; mas porque seria mais uma oportunidade de se mostrar do lado em que está e mostraria que os amigos do Travis podem ter crenças duvidosas, passados complicados, mas ela sabe quem é.

Podemos separar a arte boa dos artistas maus, mas no fundo queremos mesmo que a arte e o artista sejam o mesmo. No fundo queremos que mostrem que estamos a apoiar as pessoas certas. Mesmo que nos esqueçamos de que se calhar estamos a exigir demasiado do que não nos cabe exigir — e não exigimos o suficiente de outros. Mas quem sou eu para falar? Eu deixei de lado todo o universo Harry Potter porque deixei de suportar ouvir ou ler os tweets ridículos da J.K. Rowling…

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