Começava a tornar-se hábito, tradição. Claro que Letícia tentava negar que assim fosse. “Não é uma boa tradição”, justificava-se. Mas 2019 era o sexto ano consecutivo que começava com Letícia a chorar. Entre passas e copos cheios de champanhe, começar um novo ano deixava-a sempre triste e estava a ser complicado esconder esse sentimento. Não era que o ano que terminava tivesse sido mau, mas Letícia esperava sempre que o ano seguinte fosse pior e a festa de ano novo onde estava só podia ser um presságio para o que de mau aí vinha. Má música, má companhia, má bebida. Só podia esperar que o ano que começava fosse ainda pior.
Para Tobias a situação era diferente. Ele adorava o início de um ano novo, adorava as oportunidades, adorava pensar que, mesmo que o ano anterior tivesse sido mau, tudo estava prestes a melhorar. Talvez não tudo… a festa só piorava. A música era má, a companhia tinha desaparecido na multidão e a bebida deixava a desejar. Tinha de dar a volta à situação e, para isso, tinha de prestar atenção ao que o rodeava. Foi quando a viu pela primeira vez. Ainda se virou para o lugar onde algum tempo antes tinham estado amigos, mas estava sozinho. Restavam-lhe duas hipóteses: ir ao encontro dela ou fingir que não a tinha visto e… ups, não, não tinha duas hipóteses. Letícia olhava agora na sua direcção. Só havia uma hipótese.
Letícia não o viu de imediato. Apesar de estar a olhar para o que estava à sua volta, o que ela procurava era uma saída. Só então viu Tobias. Não tinha outra hipótese a não ser esperar que ele se aproximasse.
Enquanto atravessava a sala, Tobias pensava em todas as formas possíveis de começar a conversa. Nenhuma lhe parecia adequada, interessante. De certeza que ela conseguiria desvendar as suas intenções ainda antes de ele abrir a boca.
Letícia tentava também arranjar uma boa maneira de quebrar o gelo agora que o via dirigir-se a ela. Claro que ela sabia qual o motivo que o levava ali, mas como fazer para se manter descontraída?
Enquanto Tobias abria caminho, a expressão de Letícia revelava um certo nervosismo e isso agradava ao rapaz, que sorria.
— Não pareces estar a divertir-te. — disse, mal ficou frente a frente com ela.
— Não estou. — retorquiu, com a frieza que esperava que a salvasse. Tobias deu um passo atrás. Esperou uns segundos, mas Letícia continuava sem sorrir.
— Somos dois, então. —acabou por dizer. — Ia com uns amigos para outra festa, aqui perto, mas perdi-os de vista. — explicou.
Letícia observava-o atentamente. Estudava aquilo que ele lhe dizia, quase tentando perceber se podia ou não confiar nele. O sorriso reticente de Tobias dizia-lhe que sim e ela decidiu acreditar.
— Quem me dera ter outra festa onde ir… — disse, deixando escapar um pequeno sorriso.
— Podes sempre vir comigo! — ofereceu Tobias, desejoso de que ela aceitasse. Sem uma resposta imediata, Tobias olhou para o relógio e insistiu. — Faltam vinte e cinco minutos para uma da manhã. Se sairmos agora chegamos a tempo de comemorar a entrada do novo ano nos Açores!
Letícia deixou escapar uma gargalhada, mas olhou em volta. Nem sinal das amigas. Olhou novamente para Tobias. Sabia que podia confiar nele, mas não sabia se precisava mesmo de outra festa. Tobias olhava-a, expectante. Havia algo nele que a incentivava a ir. “Será que se fizer algo diferente o ano vai ser melhor?”, pensou.
— Está bem. Vamos. — disse.
Tobias sorriu e agarrou-lhe a mão, sem que nenhum deles prestasse atenção ao gesto. Havia uma saída mesmo ao lado de Letícia e ela revirou os olhos a si mesma ao perceber que tinha estado a dois metros dali durante toda a noite. Lá fora, continuaram de mão dada, como se não notassem que assim estavam. Tobias falava alegremente sobre a festa a que se dirigiam e Letícia deu por si a gostar do momento e, pior, da companhia.
Mal chegaram à entrada, Letícia percebeu que esta seria uma festa diferente. Para começar, a música que vinha de lá era muito melhor. Tobias largou a mão dela quando entraram e Letícia sentiu, com alguma surpresa, que preferia continuar com a mão junta à dele.
— Fica aqui enquanto eu vou buscar bebidas, está bem? — perguntou-lhe Tobias. Letícia acenou, mas ainda pensava nas mãos.
Tobias regressou mais rápido do que Letícia esperava e trazia dois copos. Esticou-lhe um, em que ela pegou com algum receio. Discretamente, chegou-o perto do nariz.
— Vodka de morango? — perguntou, surpreendida. — Como é que sabias que…
Tobias sorriu.
— Anda! — disse-lhe, agarrando novamente a mão dela. — Disseram-me que a festa está ainda melhor no andar de cima.
Letícia deixou-se encaminhar por ele. Sentia que acreditaria em tudo o que ele lhe dissesse naquele momento. Michael Jackson não morreu, a Terra é plana, lobisomens existem? Se Tobias o dissesse, ela acreditava. Sorriu para si mesma perante tal pensamento.
O andar superior tinha uma janela com vista panorâmica. A cidade iluminada parecia mais bonita. Tobias voltou a largar a mão de Letícia e olhou para o relógio.
— Mesmo a tempo! — disse. — Estás pronta para a nova passagem de ano? — perguntou.
— Espero que seja melhor do que a anterior. — afirmou ela. Tobias sorriu.
— Ok, vamos lá a isto… — mostrou-lhe o relógio. — Ora… dez… nove… oito…
Letícia não o deixou continuar. Tobias não teve como terminar a contagem regressiva. Parou no sete, desprevenido. Letícia beijava-o. Quando parou, nenhum deles sabia o que dizer.
— Dizem que um beijo na passagem de ano dá sorte… — disse Letícia, sem saber explicar o motivo para o ter feito. Tobias riu.
— Já te disseram que és diferente do habitual? — perguntou.
— Sim. Costumavas dizer-me isso muitas vezes.
Tobias sorriu e acenou de forma afirmativa. Ela tinha razão. Ele tinha dito aquilo muitas vezes, durante muito tempo.
— Pensei que íamos ignorar o passado. — confessou.
— E qual é a piada disso? — retorquiu Letícia.
— O que achas que significou encontrarmo-nos hoje? — perguntou.
Letícia pensou por uns segundos e depois sorriu.
— Que finalmente podemos seguir em frente.
Todos os contos do projecto Conta-me Histórias seguem o Antigo Acordo Ortográfico. Descobre mais sobre o projecto aqui.