Born a Crime: sobre privilégio, racismo e história

Vou começar pelo fim. O Born a Crime mexeu muito comigo. Primeiro, fez-me sentir ignorante. Segundo, fez-me sentir privilegiada. Depois, fez-me sentir mal por nunca ter dedicado muito tempo a estudar a história da África do Sul. Pelo meio, deu-me alguns murros no estômago, provocou alguns sorrisos e deixou-me por vezes à beira de lágrimas.

Ao contrário de algumas biografias e livros de memórias, este livro do Trevor Noah vai além da história dele e, por isso, acho que é um livro que pode ser lido mesmo por quem não o conhecer. Vamos por partes.

 

Trigger warning:

racismo e discriminação, violência doméstica, alcoolismo

 

Born a Crime: A história do Trevor na história da África do Sul

Comecemos com uma pequena lição de história. O que é que te lembras de estudar sobre a África do Sul? Aquilo de que eu me lembrava era do Cabo das Tormentas, mais tarde apelidado de Cabo da Boa Esperança. O tal cabo que os portugueses conseguiram dobrar para chegar à Índia. Antes de ser a África do Sul que hoje conhecemos, foi uma colónia holandesa e, posteriormente, britânica. 

Foi enquanto colónia britânica que, em 1910, surgiu a União Sul-Africana. Embora dependente do império britânico, a União Sul-Africana foi o que começou a formar a África do Sul enquanto país e é também aqui que começam as bases para o regime de apartheid, uma palavra africânder que significa separação. 

Em 1931, a União Sul-Africana torna-se independente do Reino Unido. Quando a Segunda Guerra Mundial começa há algum desconforto no governo, que quer alinhar-se ao lado do Reino Unido, mas o Partido Nacional opõe-se. Este partido chega ao poder em 1948 e instaura um regime de segregação racial

Neste regime, a legislação diferencia as pessoas em grupos raciais: os brancos, os negros, os de cor e os indianos. Esta segregação ocorria em todas as áreas que podes imaginar, havendo zonas de habitação para cada um, acesso diferenciado a cuidados de saúde ou mesmo a justiça. Um negro não podia viver numa zona de brancos, um branco não podia viver numa zona de cor

Depois, em 1949, surgiu a lei que proibia casamentos entre pessoas de raças diferentes. No ano seguinte uma nova lei, a lei da imoralidade. De acordo com esta lei era considerado crime se duas pessoas de raças diferentes tivessem relações sexuais. É importante ter este pedaço de história em consideração para perceber uma parte muito importante da história do Trevor.

Nascido um crime.

A mãe de Trevor, Patricia Nombuyiselo Noah, é negra, de origem Xhosa. Em 1983 queria ter um filho e, por isso, pediu ajuda a Robert, branco, de origem suíça-alemã. A concepção do Trevor foi, aos olhos da lei do apartheid, um crime. É aqui que começa a história de Trevor.

Ao longo de Born a Crime, Trevor fala de como foi crescer na década final do apartheid e nos primeiros anos de democracia, que começaram com a eleição de Nelson Mandela, em 1994. Ficamos a conhecer a educação altamente religiosa que Trevor recebeu, por influência da mãe, vemos o Trevor passar por uma fase de descoberta sobre o mundo, raça, crime.

Ainda no início do livro, Trevor explica que não sabia o que era raça. Para ele as cores das pessoas eram como chocolates: a mãe era chocolate negro, o pai era chocolate branco e ele era chocolate de leite, mas… era demasiado claro para ser negro, era demasiado escuro para ser branco. O próprio conta que teve de escolher um lado.

Não considero o Born a Crime uma biografia pura e dura, mas mais um livro de memórias, uma vez que percorre maioritariamente a infância e adolescência do Trevor, com um destaque muito importante para a relação com a mãe, principalmente no final, quando fala sobre violência doméstica.

Ignorante e privilegiada. Murros no estômago e sorrisos.

Ler o Born a Crime foi uma experiência muito rica. A escrita do Trevor é agradável, muito explicativa e com sentido de humor, o que, claro, provocou alguns sorrisos. Ainda assim, não esquece os momentos maus e complicados da sua história e da história do seu país. Há muitos murros no estômago. Um deles fez-me sentir altamente ignorante.

Há um momento em que o Trevor menciona que aquilo que marca a diferença entre o que aconteceu aos judeus pelas mãos dos nazis e o que aconteceu aos africanos pelas mãos do apartheid é a documentação. Quantas vezes não ouvimos falar da Segunda Guerra Mundial? Lemos, vemos, ouvimos. Tanta coisa sobre o nazismo.

E eu senti-me muito ignorante porque consigo explicar mais detalhadamente o nazismo e a Segunda Guerra Mundial do que conseguia explicar o apartheid, já li e vi muito mais sobre o que aconteceu aos judeus do que sobre o que aconteceu na África do sul. Sabia o básico dos básicos: regime de segregação, acabou com o Nelson Mandela, foi lá na África do Sul, é isso.

Nunca me senti tão ignorante e estúpida a ler um livro. Como é que é possível saber tão pouco sobre algo que terminou há menos de 30 anos? Fui corrigindo as falhas à medida que lia. Pesquisei, informei-me, senti-me uma privilegiada porque nunca vivi e provavelmente nunca viverei num regime assim. Nunca saberei o que é realmente viver assim.

Fiquei a pensar sobre se é problema do sistema de ensino, que não dá grande destaque ao apartheid. Também fiquei a pensar sobre se é problema do hemisfério norte, que não se importa tanto com o que acontece no hemisfério sul. E, claro, pensei se a culpa seria totalmente minha, que devia saber mais de história mundial. Bem, as minhas aulas de História acabaram no 9.º ano, tive duas cadeiras de História na licenciatura em Jornalismo, mas focaram-se no início do século XX, maioritariamente em Portugal, com algumas alusões à Primeira Guerra Mundial.

Como a única parte que posso mudar é a minha, fiz o que faço sempre: fui estudar o assunto. O mínimo. Precisava de estudar muito mais.

Directamente para os favoritos... da vida.

Born a Crime é um livro excepcional. Um livro que deixou uma marca profunda na minha vida e que me fez ganhar um respeito ainda maior pelo Trevor Noah. É um dos preferidos das minhas leituras de 2020 e tornou-se também um dos preferidos da vida. Não consigo deixar de recomendar, mesmo a quem não conheça o trabalho do Trevor.

Podes esperar murros no estômago, mas também vais aprender muito. E certamente sairás da leitura com a certeza de que nutres uma paixão gigante pelo Trevor Noah…. ah, espera, isso talvez seja só comigo. Culpo os especiais de comédia, principalmente o Afraid of the Dark.

No fundo, o que te quero dizer é que acredito que o Born a Crime é um livro da caraças, que precisas de ler urgentemente. Não por mim, mas por ti.

Título original: Born a Crime
Título em português: Sou um Crime
Autor: Trevor Noah
Ano: 2016 (PT: 2018)

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4 Replies to “Born a Crime: sobre privilégio, racismo e história”

  1. Um dos meus livros preferidos da vida também 🙂 Fiquei muito feliz quando li que o Trevor vai lançar outro livro de memórias sobre ter-se mudado para os Estados Unidos e a vida no stand-up comedy. Mal posso esperar para ter outro livro dele para ler 🙂

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