O ordenado cai na conta. Propinas pagas. Renda paga. Transferência para o PPR feita. Mais dez por cento para a poupança. Vou ter de meter gasolina e o preço só sobe. Tenho de fazer marcações de adulta. O calendário diz-me que está a ficar impossível acabar a tese quando quero. Segunda-feira volto à rotina. Quem é que decidiu que em 2023 ainda faz sentido para toda a gente trabalhar em regime presencial, 40 horas por semana, 5 dias por semana? Tenho de continuar a alimentar-me bem. Preciso de tentar que a ansiedade não me consuma. Não me posso esquecer das vitaminas. Com os dias a crescer e se houver sol vai saber ainda melhor sair do trabalho e poder fazer caminhadas. Tenho de cozinhar de forma mais eficiente. Tenho mesmo de trabalhar na tese. Tenho mesmo de marcar reunião com a orientadora. Será que vou ter tempo para ler? Tenho saudades de escrever, mas agora preciso de escrever outras coisas. Okay, comprei bilhetes para um espetáculo. Será que consigo fazer sobrar dinheiro suficiente para acrescentar mais à poupança e pensar em começar este ano o que quero fazer? Preciso de dormir. Preciso de estudar. Estou a tentar manter a leitura e os conteúdos. Não dá para fazer tudo. Às vezes queria só ficar a existir. Que vida esta de acordar, preparar para o trabalho, trabalhar quatro horas, tentar ler qualquer coisa enquanto almoço apesar de acabar a ver TikToks, trabalhar mais quatro horas. Esperar que corra tudo bem e possa sair a horas. Chegar a casa, ir caminhar, tomar banho, fazer comida, tentar aproveitar as duas ou três horas que sobram antes de cair de sono… mesmo que às vezes caia de sono muito antes. Penso na Dolly Alderton.
A Dolly tem um ensaio no Tudo O Que Sei Sobre O Amor a que chamou Tottenham Court Road e Encomendar Merdas na Amazon. Penso muito neste ensaio, talvez mais do que devia. Neste ensaio, a Dolly fala sobre uma noite em que, quando tinha 21 anos, saiu para celebrar o 30.º aniversário de uma amiga. Inicialmente, achava que a amiga estava a exagerar ao se mostrar tão incomodada pelos 30 anos, mas depois percebe que a amiga se sente mesmo mal com aquele marco. A amiga pergunta, com um certo desespero: A vida é só mesmo isto? A porra… da Tottenham Court Road e encomendar merdas na Amazon? Quando li o livro pela primeira vez achei mais piada a isto do que da segunda vez. Porque da segunda vez não só já me tinha perguntado se a vida era só mesmo isto como me estava a perguntar se a vida era só mesmo isto. Não a Tottenham Court Road nem as merdas da Amazon, mas talvez a Rua do Carmo e encomendar merdas na Fnac ou a Rua de Santa Catarina e encomendar merdas na Amazon, pronto.
Quando começas a perguntar a ti mesma se a vida realmente não é mais do que esperar pelo autocarro na Tottenham Court Road e encomendar na Amazon livros que nunca hás de ler, então, estás a ter uma crise existencial. Estás a aperceber-te da mundanidade da vida. Estás finalmente a perceber que poucas são as coisas que valem a pena. Estás a sair do reino de fantasia do «quando eu for grande» e a ajustar-te à realidade de que já chegaste lá: está a acontecer. E não é o que pensavas que podia ser. Tu não és quem pensavas poder vir a ser.
Quando entro naqueles dias de rotina, de piloto automático, de ansiedade, penso nisto, penso se a vida será só a porra da Tottenham Court Road e encomendar merdas na Amazon. E há dias em que acho que a vida é mesmo só isto. Esperar não ter de ficar parada na subida do ISMAI, controlar o preço da gasolina, encomendar livros na Wook, perder mais de quarenta horas da semana num escritório, passar semanas sem ver amigos, tentar cozinhar refeições equilibradas, mandar vir Uber Eats, tomar banho enquanto se pensa que as horas estão a passar e ainda é preciso escrever uns parágrafos na tese ou ler uns artigos ou simplesmente limpar os cabelos todos que habitam no chão do quarto. E os dias passam assim e a vida parece ser só mesmo isto e esperar por fins-de-semana ou dias de férias. Não quero que a vida seja só isto. Mesmo quando tem de ser, não quero que possa ser só isto.
O ordenado cai na conta. As propinas estão todas pagas. Renda paga. Transferência para o PPR feita. Mais dez por cento para a poupança. Vou ter de meter gasolina, mas diz que o preço baixa para a semana. Tenho de fazer marcações de adulta e já comecei a fazê-las. O calendário está apertado, mas hei de acabar a tese. Ainda por cima gosto tanto da tese. Segunda-feira volto à rotina. Já não faz sentido regime presencial obrigatório, quarenta horas por semana, cinco dias por semana, mas havemos de chegar a algo mais adequado. Tenho de continuar a alimentar-me bem. Se calhar vou gastar o meu tempo no TikTok a ver receitas rápidas, fáceis, saborosas. Preciso de tentar que a ansiedade não me consuma, não sei bem como, mas preciso. Não me posso esquecer das vitaminas. Vai saber bem caminhar ao pôr-do-sol e apreciar o aumento das horas de sol um bocadinho todos os dias. Tenho de cozinhar de forma mais eficiente. Tenho mesmo de trabalhar na tese. Tenho mesmo de marcar reunião com a orientadora. Que se lixe, vou fazer tempo para ler, vou fazer tempo para escrever. Okay, comprei bilhetes para outro espetáculo. Também tenho de controlar a ansiedade financeira. Preciso de dormir. Preciso de estudar. Estou a conseguir manter a leitura e os conteúdos. Não, não dá para fazer tudo e às vezes tenho de me permitir ficar só a existir. Que esta vida de acordar, preparar para o trabalho, trabalhar quatro horas, tentar ler qualquer coisa enquanto almoço apesar de acabar a ver TikToks, trabalhar mais quatro horas, esperar que corra tudo bem e possa sair a horas, chegar a casa, ir caminhar, tomar banho, fazer comida, tentar aproveitar as duas ou três horas que sobram antes de cair de sono… bem, é um bocado da vida, mas não é tudo na vida. Nunca será tudo na vida. Penso na Dolly Alderton. Também ela viu que a vida ia ser mais do que a porra da Tottenham Court Road e encomendar merdas na Amazon.
Toda uma (des)ilusão… a vida adulta.
Nem diria desilusão, mas talvez… desafio?
A parte mágica (não necessariamente otimista) deste tipo de relatos e desabafos é sentir que estamos todos a pensar o mesmo. Ainda que com as nossas neuras e inquietudes particulares (cada um com a sua rua e cada um com as suas merdas preferidas), a cassete é a mesma, a ansiedade de viver além de sobreviver é a mesma. É humano, inquietante e otimista, ao mesmo tempo. Porque se estamos todos a pensar o mesmo, não estamos sós, não somos ilhas de más decisões. Somos só humanos num sistema estranho. E há momentos em que saímos da ilha. São os melhores.
Perceber que não estamos sozinhos dá e tira algum alento. É mesmo ir tentando sair da ilha… por vezes consegue-se.
Onde assino? Tal e qual…