desengatados: as mentiras que contamos aos outros… e a nós

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Todos temos personas. Não é uma questão de falsidade, mas é uma questão de nos moldarmos e de nos adaptarmos ao espaço em que estamos, de mostrarmos facetas diferentes em lugares diferentes. A pessoa que somos no trabalho não é a mesma pessoa que somos quando estamos em casa de pijama. A pessoa que somos em reuniões familiares não é a mesma que somos com os nossos amigos. A pessoa que somos online não é a pessoa que somos offline. Este dado pode ser adquirido, mas também pode ser levado ao extremo. Porque ter uma persona é uma coisa, mentir sobre quem somos ou sobre as coisas de que gostamos é outra. Hoje vamos à parte da mentira.

A melhor versão de ti

Imagina que vais comprar um armário para a tua casa. Chegas à loja e o vendedor dá-te todas as vantagens do armário, tu gostas do aspecto dele e decides avançar com a compra. No entanto, quando terminas a montagem percebes que se calhar precisavas de gavetas no armário ou que se calhar uma das portas não funciona tão bem. Podes escolher manter o armário e adaptar o uso dele de forma a conseguires tirar melhor partido dele ou podes devolvê-lo e ir procurar um que seja mais adequado a ti e àquilo de que precisas.

Este momento IKEA tem um propósito: quando estás a conhecer alguém estás naquela fase de venda, em que mostras o teu melhor lado e esperas ver o melhor lado da outra pessoa. Só mais tarde descobres que a madeira está lascada num sítio ou que uma das portas não fecha tão bem. É normal. Há falhas que só surgem com o uso… ou com o tempo. No entanto, imagina que o vendedor te diz que a madeira é muito resistente e tu estás a encher o teu armário e, de repente, todo o armário cede ao peso e colapsa? Enquanto uma porta que fecha mal é fácil de ultrapassar, um armário destruído é mais difícil de ignorar. É o que acontece quando estás a conhecer alguém: há pequenos segredos e mentiras ultrapassáveis e há outros que estragam tudo. Se isso nos impede de fugir um bocadinho à sinceridade? Claro que não. A questão é que umas vezes mentimos aos outros… e outras mentimos a nós próprios.

Little white lies

Há pequenas mentiras que contamos que não têm grande importância. Sim, a comida estava ótima! Não, não me importo que convides outras pessoas para jantar connosco! Claro, depois combinamos um café! Não queremos magoar a outra pessoa com informações irrelevantes, queremos ser a pessoa fixe, sabemos que não são mentiras que alteram a nossa vida.

Mas e as outras?

Já falei dos casos dos perfis falsos e não vamos voltar aí. É uma linha vergonhosa. Também não vamos falar do podes comer a última fatia da pizza, eu já estou cheia (apesar de só ter comido duas fatias). Ou do não, 4 nuggets e as batatas fritas chegam, eu tomei o pequeno-almoço às 9 da manhã e são 6 da tarde por isso estou bem. Embora sejam temas interessantes, não me levam onde quero chegar. Vamos falar das mentiras que contamos aos outros… e que às vezes denunciam as mentiras que contamos a nós mesmos.

A mais básica: vamos ver no que dá

Já falámos aqui muitas vezes sobre o que se procura numa dating app e sobre como nem sempre sabemos exatamente aquilo que estamos a procurar. No entanto… uma coisa que aprendi é que há quem saiba muito bem o que está a procurar, que saiba exatamente onde quer chegar e, ainda assim, tu perguntas: qual é o teu objetivo? E a resposta vem com um: vamos ver no que dá.

Tal como te disse, quando comecei no Tinder eu não sabia realmente o que estava a procurar, o que queria encontrar. A certo ponto, no entanto, percebi perfeitamente o que queria dali. Numa altura o que queria era nada. Tanto que não fui lá durante semanas. Estava a sair com o Carlitos, estava ocupada com a vida, não queria mais.

Noutra altura queria candidatos a fazer ciúmes ao Carlitos / candidatos a ajudar-me a mostrar que eu não ia cair nos jogos do Carlitos. Cansei-me rápido porque eu não consigo ser essa pessoa.

Por fim… tive a altura em que só queria ocupar a cabeça com pessoas que não o Carlitos. Foi a parte mais divertida, mas também aquela que sentenciou o fim da minha exploração. Falei com pessoas, conheci pessoas, cansei-me de pessoas. E depois correu tudo mal com o Carlitos.

O Carlitos é um belo exemplo para vários dos exemplos deste episódio (e isto não é nada redundante). Comecemos por esta. Lembras-te de quando falei sobre o facto de termos ido tomar café? Beeeeem, algo que eu quis perceber de início foi aquilo que ele queria. Ele sabia perfeitamente o que queria. Mas a resposta dele foi: vamos tomar café e logo se vê no que dá.

O que eu achei que ele queria dizer: vamos tomar café e se correr bem saímos mais vezes, talvez haja aqui qualquer coisa.

O que ele queria dizer: vamos tomar café e se eu te achar boa o suficiente vamos ter sexo. Várias vezes. Enquanto me apetecer.

Ele sempre soube que só queria algo casual. Mas não o dizia diretamente. Era vago nas respostas. Dava sempre a entender que havia um certo carácter provisório, mas deixava a dúvida sobre se havia algo definitivo ou não. Mesmo depois de semanas, quando ele falava em planos não se percebia se era algo que ele queria mesmo ou se era só falar por falar.

Eu também não quero nada sério… contigo

No episódio 3 contei aqui a história do Ruizinho, o tal que ficou perdido durante horas numa conversa consigo mesmo. Aquilo que eu não contei é que algo que ele repetiu várias vezes nessa noite foi que não queria uma namorada, que não tinha tempo para namorar, que sabia perfeitamente o que queria da vida naquele momento e não era uma namorada. Sorri e acenei a tudo. E respondi com um: não te preocupes, não estou a procurar um namorado.

Eis uma análise ao que ele queria dizer: Sofia, isto é só uma cena casual, umas vezes para me divertir, porque eu não quero nada sério… contigo.

O que ele achou que eu queria dizer: Ruizinho, claro que quero namorar contigo, como não? Estamos a conversar há duas horas e tu és tão interessante.

O que eu queria mesmo dizer: Ruizinho, eu nem sei se te quero ver uma segunda vez, mas definitivamente não quero nada sério… contigo.

Eu sei, eu sei. É mau. Mas há pessoas com quem sabemos simplesmente que não vamos querer ter um grande investimento. Podíamos investir mais na sinceridade? Sim, mas para quê magoar o ego de alguém que não vamos voltar a ver?

A minha relação está arruinada…

Esta é uma história complicada porque sei que levanta aqui algumas questões. Já te disse que encontras de tudo numa dating app, acho que ainda não te disse que nesse tudo há gente comprometida. E não, não estão numa relação ética não-monogâmica. É tudo menos ético.

Nem sei que nome lhe dar porque, por um lado, simpatizei com ele. Por outro lado… é uma história complicada. Vou chamar-lhe Jorginho, mas não me peçam para explicar esta associação de nome. O Jorginho foi um dos meus matches da edição ocupar a cabeça com pessoas que não o Carlitos. Ganhou o meu gosto porque, numa das fotos, mostrava dois cães super fofinhos. (Eu já disse que tenho critérios rigorosos, certo?)

Falámos sobre música, algo em que nos entendemos bem, e a certo ponto da conversa ele perguntou algo sobre a minha descrição do Tinder da altura: emotionally unavailable. Era meio piada, meio verdade. Era um daqueles momentos em que eu podia seguir com uma pequena mentira inocente e teria sobrevivido. Mas eu tinha de ir pela parte semi-honesta e expliquei por alto que estava a tentar tirar alguém do sistema. O que eu não esperava era que ele fosse seguir a onda de honestidade e soltasse um: eu sou casado.

Eu já tinha falado ali com pessoas que diziam abertamente, no início da conversa, estar numa relação. Mas ou eram não-monogâmicos ou estavam à procura de um elemento exterior para uma threesome. Por isso foram essas as opções que me ocorreram e perguntei logo qual era o objetivo dele. Não-monogamia podia passar, threesome era um não gigante. Não era uma threesome. Não era não-monogamia.

A minha curiosidade não resistiu e quis perceber porquê trair alguém assim. Juro que eu só tenho tantas histórias porque sou demasiado curiosa para ficar calada. O Jorginho jurou que nunca tinha consumado uma traição. Mas estava no Tinder, a procurar pessoas, a conversar com pessoas. Jurou que o casamento estava arruinado, que não havia sentimentos entre eles, mas por um motivo específico não se sentia ainda capaz de terminar o casamento.

O motivo que ele me deu fez sentido… por um lado. Mas ele estava a querer trair. Estava a escolher o caminho escuro para colmatar algo que dizia estar arruinado… embora voltasse para lá todos os dias. Honestamente, lembrou-me o Carlitos e a Ex. E foi quando, sem ele me dizer, eu comecei a fazer contas e a perceber que as minhas desconfianças tinham de ser reais. Mas isso era o Carlitos. O Jorginho? Até onde sei, passaram meses e ele continua no casamento arruinado, a arruinar-se e a arruinar os outros.

Vamos jogar ao Quem Quer Dar o Número da Sofia a um Estranho?

Kids, I’m going to tell you an incredible story… mais ou menos, vá. Esta não é uma história de mentiras, mas sim uma história de…

Era setembro. Eu tinha cometido o erro de dar o meu número a dois matches do Tinder. Eu nunca dava o meu número. Mas dei. Estou na minha vida quando recebo um olá no Telegram de alguém que não conheço. O meu primeiro pensamento foi: ativei aquela cena de ser visível para pessoas na redondeza sem querer. Mas não. Decido ignorar. Recebo um olá no Whatsapp. Percebo que é o mesmo número. Estou confusa. Continuo a ignorar. Ganho um novo seguidor no Instagram com uma mensagem. Estou muito confusa. Respondo à mensagem com: desculpa, mas conhecemo-nos? Diz-me que não. Pergunto como é que encontrou o meu Instagram. Foi burrice minha: tinha o meu nome completo no Telegram. Okay, resolvemos já isso.

Estou tentada a ignorá-lo para sempre, mas vou ao Tinder depois de uns dias sem abrir e tenho um super like. Fico chocada a olhar para o ecrã. Tiro print. Volto ao Instagram. Pergunto quem é que lhe deu o meu número. Ele não diz o nome, mas a resposta denuncia exatamente a pessoa. Fico passada. Quem é que lhe disse que podia dar o meu número a amiguinhos? Mas depois há o super like… envio-lhe o print, meio no gozo. Este não é o tipo de mentira habitual, é mais o tipo de traiçoeiro que pode seguir para qualquer direção.

Eis a questão: eu mal voltei a falar com a pessoa que deu o meu número. Já com este… não acho que vá sair nada dali, mas vamos conversando. Acho-lhe piada na primeira vez que o vejo, mas ele não manda mensagem durante uma semana. Tudo bem, não é para voltarmos a ver-nos. Só que é sábado, estou com o Carlitos a ver livros na Bertrand e recebo uma mensagem dele. Leio-a quando o Carlitos pergunta se pode ir fumar lá fora. Ele nota que a minha expressão muda. Pergunta o que se passa. Eu digo-lhe quem é (ele sabia exatamente quem eram todas as pessoas com quem eu falava) e explico que esteve uma semana sem me mandar mensagem. Ele pergunta qual é o problema disso. Tenho vontade de atirar o Carlitos pelas escadas abaixo e de lhe berrar que o problema é ele e a merda que me fez no verão de não me falar durante semanas, mas obviamente não tenho força para o empurrar pelas escadas e fico calada.

Respondo à mensagem. And that, kids, is the story of how I met… o Franquito. Voltamos a ele em breve.

As mentiras que realmente arruinam algo

Tendo em conta que já expliquei o tipo de acordo que tinha com o Carlitos, que já referi que tinha sentimentos por ele, que era suposto haver honestidade entre nós e que isso era um ponto importante, acho que se percebe por que motivo é que descobrir que ele passou o verão a mentir-me foi uma traição de confiança. No entanto, isto começou antes de eu descobrir.

Quando voltámos a falar, em setembro, surgiu ali uma conversa sobre a quantidade de pessoas com quem andávamos a falar. Como sempre assumi que éramos honestos nesse campo eu fui honesta e achei que ele também tinha sido: ele disse que não andava a falar com ninguém e que não tinha estado com ninguém desde a última vez que me vira… três meses antes. Se eu duvidei? Sim. Achei estranho, porque havia já algo que me dizia que havia ali marosca. Mas deixei estar. Queria mesmo acreditar que estava tudo bem. Um mês depois soube que ele tinha voltado com a Ex durante o verão. Voltado com a Ex significa: voltou num dia, acabou no outro. Duas semanas depois soube que ele tinha, sim, estado com outra pessoa (várias vezes) em junho.

Este, para mim, é um tipo de mentira difícil de ultrapassar. É o armário colapsar em cima de nós e ainda nos magoar seriamente. É duvidar de todas as outras histórias e desculpas. Doeu mais quando, dois meses depois, o Carlitos me acusou de já não termos aquela confiança. Realmente é surpreendente eu já não confiar em alguém que me escondeu coisas…

O que fazer com as mentiras?

Como disse, todos temos personas, todos escondemos versões de nós e todos acabamos por esconder algo dos outros. Há pequenas mentiras que escapam, há mentiras perdoáveis e há mentiras que têm efeitos devastadores.

Eu dizer que não gosto de azeitonas e depois ser apanhada a comer uma salada com azeitonas escapa facilmente. Até porque eu como azeitonas em saladas, pizzas e outras misturas, mas odeio o sabor delas isoladas.

Eu dizer que não quero uma relação apesar de querer é perdoável facilmente porque posso simplesmente não querer uma relação com aquela pessoa.

Eu garantir-te que vou ser honesta em relação às pessoas com quem falo ou saio e depois esconder-te essas pessoas e fingir que não existem… bem, talvez tenha um efeito devastador e irrecuperável.

Eu dizer que não quero ir sair porque tenho coisas combinadas apesar de essas coisas serem eu ficar em casa a ler e dormir não tem o mesmo impacto de eu ter uma relação com alguém e trair.

E aqui entram várias questões: porquê mentir? O facto de ser algo online dá quase a sensação de não ser a vida real, não é? Podemos quase ser quem quisermos ser e isso cria a tentação de jogar com o real e a ficção. Eu adoro jogar com ficção… por isso é que escrevo. Maaaaas… enquanto pessoa adulta não sinto qualquer necessidade de ser alguém que não sou, pelo menos não completamente.

Já tentei ser a miúda fixe das relações casuais, mas admito que não me cai bem porque ou há algum envolvimento emocional ou eu perco interesse. Mas haver envolvimento emocional é terreno perigoso.

Tento ser sempre a miúda que não julga e que faz perguntas e quer saber mais, porque sou realmente curiosa na parte de tentar entender as pessoas, mas nem sempre consigo não julgar.

Tento ser a miúda confiante, engraçada e que leva tudo na boa, mas às vezes estou a pensar qual é a parte que ele vai odiar, quando é que ele vai descobrir que sou um poço de ansiedade e qual vai ser o momento em que tudo vai ficar arruinado.

A verdade é que sim, podemos ser quem quisermos no Tinder e fora dele. Mas é muito difícil fugir a quem realmente somos… no Tinder e fora dele.

O segredo aqui talvez seja tentar ser o mais honesto possível com os outros: com o que queremos, com o que não queremos. O que nos deixa desconfortáveis, o que é uma linha vermelha para nós.

E, claro, ser o mais honesto possível connosco: o que queremos mesmo. O que sentimos mesmo. O que não aceitamos mesmo. Por que raio damos segundas ou terceiras oportunidades a quem nos trata como quarta ou quinta opção. Por que raio chegamos a um limite e percebemos que há coisas que simplesmente tiram todo o tesão possível.

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