Conta-me Histórias 1×04: Pedro e Rodrigo [2]

— Tens a certeza? — perguntou Rodrigo, mesmo já sabendo a resposta.

— Tenho. Tenho mesmo. — confirmou Pedro.

Via-se que lhe custava dizer aquelas palavras. Sem resposta do outro, Pedro acabou por o deixar sozinho. Tinham passado já cinco dias e não haviam trocado mais palavras. Não fora uma decisão simples, mas Pedro ponderara durante muito tempo e concluíra que era a melhor forma.

Tinham terminado os exames, em breve Rodrigo partiria para umas semanas de férias com o pai e pouco depois saberiam o que lhes reservara o futuro. Era esse futuro que fazia Pedro ter tantas certezas. Pedro queria estudar no Minho, Rodrigo no Algarve. Já se conheciam há anos suficientes para saberem que não acreditavam em relações a uma distância tão longa. Era melhor assim, principalmente se tivessem um Verão inteiro para assimilar a nova realidade.

 

Mas a nova realidade era uma treta.

 

Mas um Verão inteiro não chegava.

 

O Verão de Rodrigo estava ainda no início. As notas tinham-lhe dado um novo fôlego. Dezoito a tudo, dezoito nos exames. O sonho de ser biólogo marinho estava perto. Nunca recebera prendas pelas notas, mas, desta vez, a mãe surpreendera-o com um computador novo. Dias depois partiu para o Alentejo, onde o pai vivia. Rodrigo adorava o Alentejo, mas o mês e meio que passou lá foi demasiado longo. Quando regressou, no final de Agosto, parecia que tinha passado anos longe, mas doía como se tivesse ido ontem. Seis semanas no Alentejo não tinham chegado para recuperar, mesmo que tivesse andado um pouco por todo o lado, de Évora a Milfontes, de Sines a Beja. Poderia ter percorrido Portugal inteiro que o resultado seria igual. Poderia ter percorrido o mundo que nada se alteraria. Quando regressou a casa sentia-se exausto. E não tinha o Pedro.

 

Para Pedro o Verão não tinha incluído muito. Não ia passar férias fora, por isso não tinha a distracção de um local novo. O Verão tinha sido dividido entre longas tardes de filmes, consola e sestas e uma ou outra saída ocasional com os amigos, que às vezes lhe permitia dar alguns beijos a rapazes ou raparigas, conforme a noite. Os dias demoravam anos a passar. Quando Setembro começou, Pedro tinha a certeza de que já devia estar na meia-idade. Sentia-se exausto. E não tinha o Rodrigo.

 

— A que horas achas que saem os resultados? — perguntou a mãe.

Rodrigo encolheu os ombros.

— Deve ser à noite. Nos outros anos foi à noite. — continuou a mãe. — Lembra-me as opções.

— Algarve, Aveiro, Lisboa. — disse Rodrigo, pela décima vez nessa semana.

— Ainda acho que devias ter escolhido algo melhor. A tua média é tão alta, dá para tanto! — replicou a mãe. Rodrigo ignorou. Aquela era uma discussão antiga, que não valia a pena naquele momento.

Noutro lado da cidade, Pedro tinha uma conversa semelhante com os pais.

— Quais são as opções que escolheste? — perguntou o pai.

— Minho, Porto, Lisboa.

— Entras em qualquer uma, por isso não te preocupes. — assegurou a mãe. — A tua média não foi a mais alta da escola, mas foi muito boa.

A média mais alta da escola tinha sido a de Rodrigo e a mãe não gostava de Rodrigo, mas não queria discutir mais sobre ele.

— Quando souberes avisa-nos. — pediu o pai.

Pedro acenou afirmativamente. Tinha a tarde toda sem saber o que fazer e decidiu sair. Caminhava sem rumo até perceber que sabia perfeitamente para onde se dirigia. Tocou à campainha e esperou. Quando a porta abriu viu Rodrigo, surpreendido, à sua frente.

— Posso entrar? — perguntou.

Rodrigo, ainda incrédulo, limitou-se a abrir mais a porta e acenar afirmativamente. Não esperava que a sua tarde tomasse aquele rumo. Tolhido pela surpresa, não sabia o que dizer. Pedro também não pensara nas palavras que ia usar quando ali chegasse. Ficaram longos minutos em silêncio, parados na entrada.

— Vamos para a sala? — perguntou Rodrigo.

— Desculpa ter vindo sem avisar. — disse Pedro.

Rodrigo sorriu.

— Ainda bem que vieste.

Na sala, sentaram-se afastados, de olhos presos em pontos distintos da parede. Pedro tossiu.

— Às vezes tenho saudades de quando estávamos no sexto ano. — disse. — Parecia tudo tão simples, tão…

— Eu não tenho saudades. — afirmou Rodrigo, seguro. — Nós crescemos e vivemos tanto desde aí. Estamos melhores agora.

— Talvez, mas… não sei se estou preparado para passar por tudo outra vez. — admitiu Pedro.

— Sempre tiveste receio de não ser aceite porque sempre achaste que tinhas de te explicar. Não tens de explicar quem és.

— É assustador! — reclamou Pedro.

— É, mas a piada está aí. — disse Rodrigo.

— Como é que consegues estar tão calmo perante uma mudança tão grande?

— Uma vez, há muitos anos, conheci um rapaz que chegou a uma escola nova e se apaixonou por outro rapaz. Se esse rapaz conseguiu ultrapassar todos os problemas dessa mudança e todos os preconceitos que se seguiram, então acho que aguento o resto.

Pedro sorriu.

— Só consegui porque te tinha. Nunca teria conseguido aceitar-me sem ti. — disse. — Tenho medo de que não me aceitem lá, na universidade.

— Pedro, tu és lindo. O maior problema que vais ter é teres demasiados pretendentes, de qualquer género! Seja quem for a pessoa, vai gostar de ti por quem és. Não importa se és bissexual ou não.

Pedro assentiu, em silêncio. Teria respondido, mas o telemóvel interrompeu-o, anunciando a chegada de um e-mail. Segundos depois o telemóvel de Rodrigo fez o mesmo. Os rapazes olharam-se e respiraram fundo. Os resultados tinham chegado. Deram as mãos e abriram a mensagem a medo. Tudo estava prestes a mudar.

Dez anos depois

Pedro estacionou o carro em frente à casa dos pais e respirou fundo. Iam comemorar 30 anos de casamento com um jantar para vários amigos e familiares e Pedro não estava nem um pouco entusiasmado. Por algum motivo que ele desconhecia, nos últimos anos, sempre que havia eventos de família, todos lhe perguntavam quando é que casava. Ia ser uma longa noite.

Cumprimentou os pais, deu-lhes os parabéns e perguntou em que podia ajudar. O pai não queria que ele tivesse qualquer tarefa, já que o filho raramente vinha a casa por estes dias, mas a mãe acabou por levar a melhor.

— Podes ir à florista? Está tudo pago; é só ires buscar!

 

Noutra casa da cidade, Rodrigo estava acompanhado. A mãe ia casar. Era algo pequeno, apenas para as pessoas mais próximas, e Rodrigo tinha um acompanhante. Era um momento importante para a família e não podia estar mais feliz por estar ali.

— Mãe? Precisas de que faça alguma coisa? — perguntou. Queria que aquele dia fosse perfeito.

— Queres ir buscar as flores?

 

— Desculpe o atraso, mas hoje está uma loucura! — informou a florista.

— Não há problema. — assegurou Pedro.

— É a festa dos seus pais, houve um funeral, há um casamento… ah, e por falar em casamento! Vens buscar as flores da tua mãe? — perguntou a florista, falando para alguém que acabara de entrar na loja.

— Venho, sim! Já estão prontas? — perguntou Rodrigo.

Ao reconhecer a voz, Pedro voltou-se para a entrada.

— Olá. — disse.

— Olá.

Só depois Pedro reparou num rapaz alto e magro ao lado de Rodrigo.

— Tens um casamento hoje? — perguntou.

— A minha mãe vai casar. — comunicou Rodrigo, com um sorriso. — E tu? — perguntou de volta, quando a florista entregou um grande arranjo a Pedro.

— Os meus pais fazem trinta anos de casados.

— Dá-lhes os parabéns por mim. — pediu.

Pedro olhou-o, confuso. Teria esquecido que os pais não gostavam dele?

— Hum, o mesmo para a tua mãe! — acabou por dizer, sem tirar os olhos do rapaz desconhecido.

Ao reparar nisso, Rodrigo olhou também para a sua companhia.

— Este é o Rui, o meu noivo. — disse.

Viu Pedro e Rui cumprimentarem-se com um aperto de mão e conteve uma gargalhada. A florista entregou-lhe dois bouquets e um arranjo grande, que Rui agarrou.

— Quem diria que nos íamos encontrar no meio de tantas flores, não é? — perguntou Pedro. Rodrigo sorriu.

— Foi bom ver-te hoje. — afirmou Rodrigo.

— Foi bom, sim. — concordou Pedro. Já estava pronto a sair da loja, quando Rodrigo o chamou.

— Já não é assustador, pois não?

Pedro voltou-se para ele. Desde que saíra dali para a universidade, mudara de curso uma vez, estivera desempregado, tivera três relações, com dois rapazes e uma rapariga. Agora estava solteiro, prestes a começar um novo trabalho.

— É assustador o suficiente, mas a piada está aí.

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