Há uns tempos gabei-me, no Twitter, de que não notava, nas pessoas que sigo, competição literária. Posso não notar a tal competição de eu leio mais do que tu, mas tenho vindo a notar algo pior. O que eu noto não é competição quantitativa, mas sim competição qualitativa. Aquela ideia de o que eu leio é melhor do que o tu lês. E isto é muito mau.
Os preconceitos literários
Todos temos, quer admitamos quer não, preconceitos literários. Ou é um género ou é um autor, mas todos temos preconceitos literários. Um dos meus preconceitos literários é com literatura erótica, por exemplo. Embora haja outros géneros aos quais sou mais resistente, literatura erótica é o expoente do meu preconceito literário. No entanto, não me acho melhor ou pior por não ler isso. Nem acho que quem lê seja melhor ou pior.
Aquilo que tenho vindo a notar é que o preconceito de que os autores mais antigos são melhores do que os mais modernos está a ter outra versão: agora há quem odeie os autores antigos porque acha os mais novos melhores. E criam discussões do outro mundo por causa disso. Eu vou passar a explicar isto tudo, para perceberes a minha posição ao achar que isto é uma epidemia capaz de matar a literatura.
O Diagrama de Venn da Literatura
Sempre houve dois lados principais. Vamos chamar-lhe os classicóides e os modernóides. Para efeitos textuais, as descrições que se seguem podem ser um bocadinho exageradas. Pronto, um bocadão.
Comecemos por falar dos classicóides. Um bom classicóide não acredita que hoje se faça boa literatura e só lê livros publicados neste século se forem de autores que já tenham publicado no século anterior… mas com restrições, claro. Não confia em autores com menos de 10 ou 15 anos de carreira e tem dificuldade em aceitar que hoje se publiquem autores tão novos, porque obviamente são maus escritores. É fã de António Lobo Antunes, claro, e não dispensa um bom Saramago, principalmente tudo o que foi publicado antes do novo milénio. Respeita os livros que vencem prémios e é assim que ainda vai lendo autores novos, mas em moderação. Acredita que nenhum jovem gosta de ler, que a culpa é da internet e que tudo o que for autor de que não gosta não devia sequer ser publicado.
Depois há os modernóides. O modernóide não lê livros com mais de 10 ou 15 anos, excepto Harry Potter. Adora Jenny Han e Colleen Hoover, mas só lê autores portugueses se forem Raul Minh’Alma, Afonso Noite-Luar e outros que lhe possam aparecer no Instagram. Tem preconceitos com literatura clássica e com livros que vençam prémios. Recusa ler Os Maias, não quer saber do Fernando e dos seus heterónimos e acha uma vergonha haver poucos eventos com autores jovens… embora também não saiba sugerir nomes que tenham tanto ou mais a dizer do que os convidados dos eventos. Gasta quase tanto a reclamar nas redes sociais como a ler. Às vezes até parece gostar mais de reclamar.
Obviamente, isto é um exagero, mas dá para teres uma ideia daquilo que quero dizer. Em co-existência com estes dois grupos, existe aquele que é, neste Diagrama de Venn, a intersecção dos dois anteriores: os eu-quero-é-ler.
Os eu-quero-é-ler, onde me insiro, podem ter resistência a alguns livros mais clássicos e a alguns autores mais antigos, mas gostam de tentar e até gostam de vários autores e livros mais antigos. Ao mesmo tempo, gostam de ler autores novos e não têm problemas em ler num e-reader ou em escolher um autor que nunca venceu um prémio. Num dia podem ler Saramago e no outro Colleen Hoover, num dia estão a ler um autor que já morreu e no outro lêem um autor que tem a vida toda pela frente. Não se importam com a idade dos livros porque querem realmente ler. Sem acharem que uns são melhores do que outros: porque são diferentes. Sou deste grupo. Amo García Márquez, não dispenso a Jenny Han. Leio clássicos, biografias e não-ficção com o mesmo amor que leio romances para young adult, humor e até tenho espaço para adorar livros práticos.
O que acontece entre classicóides e modernóides?
O que é que acontece, então? Os classicóides e os modernóides têm visões muito diferentes da literatura actual e, por isso, têm discussões constantes sobre o assunto. Normalmente, a intolerância era dos classicóides para com os modernóides, porque achavam que não se escreve tão bem hoje em dia (como se tivesse virado o século e a arte de escrever tivesse morrido), que não se publica nada de jeito e que ninguém quer ler… e quem lê só lê merda.
No entanto, tenho visto alguma intolerância dos modernóides perante os classicóides. Porque hoje se escreve muito bem, porque os livros antigos estão ultrapassados (como se uma boa história ficasse ultrapassada!), porque se dá muita atenção aos mesmos autores, porque os eventos literários deviam ter mais autores abaixo dos 30 anos.
Aqui entre nós, que ninguém nos lê, podem ir todos à merda juntamente com estes fundamentalismos ridículos. Sim, leste bem: podem ir à merda. Pelo menos lá não contribuem para estragar mais a literatura.
O que tem de mudar?
Por um lado, é preciso parar com a ideia de que a idade de um autor ou de uma obra determina a sua qualidade. O Afonso Reis Cabral ganhou o Prémio Leya aos 24 anos com um livro bastante bom. Vai ser dos melhores autores desta geração, quase quero apostar. No outro sentido, o Cem Anos de Solidão, do García Márquez, é de 1967 e é dos melhores livros de sempre.
Por outro lado, também é preciso parar com a ideia de que hoje em dia ninguém quer ler. Há quem queira ler, só não há uma cultura de leitura forte em Portugal.
Ao mesmo tempo, precisamos de parar com a ideia de que há um tipo de literatura melhor do que o outro. Livros são livros, não estão cá para estarmos a decidir se é melhor um livro de 2019 ou de 1919. Claro que serão diferentes. São épocas diferentes, são autores diferentes (espero eu). As coisas mudam, a escrita muda, a literatura muda. Não podemos ser resistentes a esta mudança, mas também não podemos esquecer-nos do caminho que nos fez chegar a este ponto.
Precisamos de passar mais tempo a ler e menos tempo a discutir se o livro que estamos a ler é melhor do que o do vizinho. Precisamos de parar de agir como se o mundo estivesse contra os livros que escolhemos. Precisamos de perceber que ter menos de 40 anos e ler autores clássicos não faz de nós pseudo-intelectualóides. E que ter mais de 40 anos e querer ler autores mais novos não faz de nós leitores acéfalos.
Também precisamos de parar de criticar eventos e festivais literários pelos autores que convidam. Se achamos que faltam autores mais novos, então pegamos nos nossos dedos e escrevemos às organizações a sugerir, de forma bem justificada, autores que pudessem ser boas opções. E se isso não resultar então sobra uma opção mais radical: tentar criar um evento que seja tudo o que devia ser.
Preconceito de leitor... e de escritor.
Achas que isto é só preconceito de leitores? Não é. O que me irrita mais é não ser só preconceito de leitor. Vejo autores com carreiras de décadas criticar os autores mais jovens. Dizem que não têm tanta qualidade, que os computadores os estragaram, que o que escrevem não é tão bom, talvez porque não é igual ao que eles fariam. Em 2019, o Prémio Leya não foi atribuído. Não sendo a primeira vez que tal aconteceu, foi a primeira vez que me apercebi de certas ideias de que não se escreve tão bem agora. Fiquei ofendida e chateada.
Acho egoísta e arrogante da parte de um autor achar que não haverá quem o possa ultrapassar, que não haverá alguém melhor, um dia. Era o que faltava à humanidade não voltar a ter grandes autores por quem se apaixonar!
E chateia-me que isto não seja só coisa de autores mais velhos. Chateia-me que haja autores mais novos que acham que são o que de melhor apareceu na literatura, que criticam tudo com uma ponta de inveja porque queriam estar naquele evento ou naquele festival literário, que acham que deviam dar mais oportunidades aos autores mais novos, que se chateiam com críticos literários e jornais porque falam de outro tipo de obras, mas depois têm discursos tão parecidos com os autores mais velhos que se torna complicado para os outros autores, os eu-quero-é-escrever ter vontade de acompanhar os colegas de profissão.
Preconceitos literários? Enough is enough
Eu também acho que há uns autores novos, que surgiram nos últimos anos, que não são assim tão espectaculares. Tal como acho o mesmo de alguns autores mais antigos. No entanto, sem os autores antigos provavelmente a literatura como a conhecemos não existia. E sem os autores novos não haveria uma geração de novos leitores mais disposta a ler alguma coisa, mesmo que seja porque viu aquele livro no Instagram.
Eu também gostava de ter opção de ouvir mais autores com os meus problemas de dificuldade de publicação ou de preconceito por ser nova, por ter publicado com uma editora vanity, etc., mas também acho que preciso de ouvir os autores com mais experiência, saber aquilo que pensam e aquilo por que passaram. Se não sabemos ouvir os mais velhos como queremos que alguém nos queira ouvir também?
No entanto, aquilo em que mais acredito é que estas guerrinhas de aquilo que eu leio é melhor do que o que tu lês e de autores novos vs. autores velhos não leva a qualquer lado. O mais importante é ler e promover aquilo que lemos da melhor forma, mostrando o que existe, o que achamos valer a pena, sem desfazer o resto dos livros e o resto dos autores.
É óbvio que não gostamos todos do mesmo, mas não é mais produtivos concentrar os esforços em promover aquilo de que gostamos em vez de perder tempo a reduzir aquilo de que não gostamos? Acredito que não sou a única a pensar assim e é por isso que continuo a escrever e a escrever sobre livros. Para mim não se trata de um género melhor, de uma geração melhor. Para mim trata-se de promover a leitura e a literatura de forma a que cada um consiga encontrar aquilo de que gosta, seja lá o que for.
Tenho zero paciência para estas guerras sem sentido. Porque acho que as pessoas perdem mais tempo a criticar os gostos dos outros do que a ler.
É perfeitamente natural não nos identificarmos com determinado género e/ou autor. Ninguém é melhor que ninguém só porque se dedicam aos clássicos ou porque apostam em literatura mais jovem. Enquanto insistirmos em colocar em causa os gostos dos outros, isto não avança.
Tão depressa estou a ler Afonso Cruz [que, para mim, está num patamar elevado], como leio Margarida Rebelo Pinto [que sei perfeitamente que alimenta muitos lugares comuns]. Porque tudo tem o seu momento.
Excelente análise, como sempre <3
Boas leituras, mas Ricardo Araújo Pereira é aquela base