Este texto está inserido no Projecto 642.
O tema é: duas pessoas que se odeiam ficam 12 horas fechadas num elevador.
Assim que a viu aproximar ainda tentou fechar a porta do elevador, mas, por mais vezes que carregasse no botão responsável pelo fecho, o elevador parecia não reagir. “Porra”, pensou. “Agora tenho de ir até ao quinto andar com esta…”
Apesar de serem cordiais uma com a outra, toda a gente na empresa sabia que elas não se suportavam. Trocaram um bom dia contrariado e a porta do elevador fechou finalmente. Cada uma fixava o ecrã do telemóvel, ignorando a presença da outra. Ainda não tinham subido dois andares quando o elevador parou abruptamente e a luz se apagou.
Ambas trocaram olhares preocupados. “Isto está sempre a acontecer”, disse uma delas enquanto carregava sem parar no botão de emergência. Aguardaram uns minutos, mas nada acontecia. Entre chamadas para os seguranças e para as respectivas equipas, lá perceberam que a falha de energia tinha sido geral e que os geradores não conseguiam fazer os elevadores funcionar. Demoraria algum tempo até que alguém conseguisse resolver o problema.
Primeira Hora
A primeira hora passou rápido, entre chamadas e pedidos desesperados para que arranjassem forma de as tirar dali. Nenhuma queria estar presa num elevador com a outra.
Segunda Hora
Convicta de que não sairia dali tão cedo, uma delas descalçou os sapatos, aliviada por descansar os pés depois de tanto tempo em cima de saltos tão altos. A outra olhou-a de lado, mas acabaria por a imitar alguns minutos depois, ao reconhecer que era uma boa estratégia. Continuavam sem dirigir a palavra uma à outra e iam enviando mensagens à equipa, a pedir que despachassem o processo.
Terceira Hora
O cenário no elevador alterara-se. Uma delas estava sentada no chão, com o computador portátil ao colo. O facto de o elevador ser espaçoso permitia-lhe esticar as pernas sem ter de tocar na outra, que se mantinha de pé, encostada a uma das paredes do elevador enquanto mexia no telemóvel. Estavam a ficar com fome.
Quarta Hora
Com a fome a apertar havia outro problema a crescer ali: estava a tornar-se difícil ignorar a presença da outra. O barulho das teclas do computador e os suspiros audíveis começavam a fazer com que o ambiente naquele elevador se tornasse insuportável. Como uma panela prestes a explodir, aquela quarta hora sentenciaria as restantes.
Quinta, Sexta e Sétima Horas
E assim começou uma discussão como nunca antes tinha sido testemunhada entre aquelas duas. Embora ninguém as visse, do lado de fora do elevador conseguiam ouvir perfeitamente aquilo que era dito. Vou poupar-vos aos conteúdos, porque a linguagem não era a mais própria, mas as palavras cabra e oferecida foram repetidas muitas vezes.
Havia acusações mútuas, de incompetência no trabalho e nas relações humanas, de roubos de equipas, de namorados e até de lugares de estacionamento. Naquelas horas o rancor que guardavam foi todo exposto.
Oitava, Nona e Décima Horas
Depois veio a parte curiosa. Entre palavras feias e acusações, começaram os queixumes e a emoção deu lugar à raiva. Naquelas horas choraram, desabafaram sobre patrões e ex-namorados, sobre outros colegas que tinham equipas melhores e salários maiores, sobre a comida terrível que serviam no refeitório e sobre como deviam ter direito a dias de folga quando estavam menstruadas. E por fim… a calma.
Décima Primeira e Décima Segunda Horas
Nas duas últimas horas ninguém falou. O cansaço e a fome falavam mais alto e todo aquele tempo tinha criado uma ligação entre elas que não podia ser quebrada. Como iriam relacionar-se depois deste dia?
Ainda se debatiam com a resposta a essa pergunta quando as luzes do elevador se acenderam e este arrancou num solavanco. Foi com alívio que a porta se abriu no piso térreo, onde várias pessoas as esperavam, admiradas por ambas estarem sem marcas de violência física.
Antes de saírem olharam-se, mas nada disseram. Depois daquele dia não podiam continuar inimigas, mas agora odiavam-se ainda mais.
Lê este e outros textos do Projecto 642.
Outros participantes: Afar | Andreia Moita | As Gavetas da Minha Casa Encantada | By Carolina | Diogo Simões
Ficar fechado num elevador nunca é agradável. Mas a experiência piora quando a vivemos com alguém que odiamos [ou não gostamos assim tanto]. Apesar de tudo, acabaram por ter um processo quase catártico e tenho curiosidade em saber como se relacionariam depois deste episódio 🙂
Adorei! Infelizmente não é fácil ficar fechado num elevador com uma pessoa que odiamos. Mas, acredito, que quanto mais odiamos, menos seguimos em frente. Temos de aprender a perdoar e só assim seguiremos em frente. Por mais que doa ou que nos irrite, se é a melhor coisa a ser feita. Estou a gostar imenso dos temas do desafio. ?
“mas agora odiavam-se ainda mais.” – oh, damn! Depois desta, de uma coisa sei: andarei sempre com comida na mala! Tenho um pânico enorme em ficar presa num elevador e nem sei explicar as razões! Não faço a mínima de como seria, ainda para mais, estando com uma pessoa que eu “odeie” – creio que apesar de ter muitas reservas para com algumas pessoas, o ódio e rancor já há muito foram trabalhados e postos de parte! -. É tentar evitar e usar as escadas, sempre que possível! ?
Beijocas,
https://imperiumblog.com/2020/08/podcasts-que-tenho-ouvido-ultimamente/