Gabriel García Márquez entrou na minha vida aos 16 ou 17 anos, quando os livros Cem Anos de Solidão e Crónica de uma Morte Anunciada me foram oferecidos. Sem maturidade literária que me ajudasse a ler o primeiro, parti para o segundo e acredito que a minha vida mudou assim que li a primeira frase.
No dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às 5.30 da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo.
Não era esperado que, a partir daquele dia, eu tivesse uma resposta pronta quando me perguntassem qual o meu livro preferido. Não era sequer esperado que este se tornasse o meu livro preferido, mas com aquela primeira frase criei uma relação profunda com este livro, de uma forma que ainda hoje não sei se consigo explicar na sua totalidade.
Este exemplar que tenho agora não era o meu exemplar inicial. Esse perdeu-se algures num empréstimo há quatro anos e não mais voltei a pôr-lhe a vista em cima. Durante algum tempo isso deixava-me triste, revoltada e chateada (como a história em si, na verdade), mas depois esses sentimentos evoluíram para outro: a esperança de que a pessoa que ficou com ele o ajude a chegar a alguém que um dia consiga criar uma ligação semelhante.
Crónica de uma morte anunciada
García Márquez disse, uma vez, que este era o seu “melhor trabalho”. Ainda não consigo confirmar que o seja, mas há neste livro mais do que uma história de uma morte. O facto de sabermos logo à partida que a personagem principal morre não é o que mais diferencia Crónica de uma morte anunciada. Na verdade, é a forma como está escrito o livro.
Crónica de uma morte anunciada confunde-se entre literatura e uma reportagem jornalística, o que levou García Márquez a dizer que era algo ao estilo do novo jornalismo que se fazia nos Estados Unidos (o jornalismo literário), mas era mais do que isso.
Inspirado por uma história real, o autor colombiano esperou umas décadas para a poder escrever, de forma a não ter grandes problemas com os protagonistas reais. Ainda assim, há várias referências à realidade, incluindo os irmãos de García Márquez.
A história é narrada por García Márquez, embora nunca seja mencionado o seu nome, que regressou vinte anos depois para tentar escrever uma crónica sobre a morte de Santiago Nasar. Na noite de núpcias, Angela Vicario é devolvida à família por já não ser virgem e, confrontada pelos irmãos, acusa Santiago Nasar.
Os espectadores
Há uma questão que se impõe em todo o livro: será que Santiago Nasar era mesmo o culpado? Acho que cada pessoa acabará por ter uma opinião sobre o assunto de acordo com a interpretação que der ao livro. Ao mesmo tempo acaba por ficar a ideia de que talvez pudesse ter sido feito algo para evitar aquela morte, o que sempre me deixou a pensar.
Entre a literatura e a reportagem, Crónica de uma morte anunciada é escrito de uma forma única, com detalhes de realismo mágico e de uma realidade marcante e de luto.
E agora spoilers…
Quando li o livro pela primeira vez fiquei revoltada. Toda a gente sabia que queriam matar Santiago Nasar e todos levaram a conversa dos gémeos Vicario na brincadeira. Eram lá eles capazes de matar alguém? Depois também pensaram que já alguém devia ter informado Santiago Nasar, portanto não havia necessidade de lhe dizer.
Na minha maneira de ver as coisas, todos foram culpados porque não agiram. Mas… não acabamos todos por ter culpas em assuntos do género? Quantas vezes pensamos que não vale a pena agir porque alguém o há-de fazer por nós? Sempre me revoltou esta situação! Os gémeos fartam-se de dizer que o vão fazer, quase como se quisessem que alguém avisasse Santiago Nasar, ou como se quisessem que alguém impedisse aquela morte. Ninguém o faz.
Depois, eu acredito que, nesta história, Santiago Nasar era inocente. Na história real a situação não seria bem assim, mas ali sempre fiquei com aquela impressão: ele não era culpado daquele crime. O que me leva a outra questão: o livro dá a ideia de que Santiago Nasar não soube o motivo pelo qual o mataram. É triste, revoltante e deixa-me chateada. Nunca falo de Crónica de uma morte anunciada de forma isenta. Nota-se, não é?
A verdade é que acho que este se tornou o meu livro preferido porque foi o primeiro livro que realmente me fez sentir. A revolta, a tristeza, a vontade de agir. Os melhores livros fazem-nos sentir algo mais e este foi um dos livros que me marcou precisamente por me fazer sentir mais. Durante dias fiquei com ele na cabeça, a remoer na história, a reler partes para perceber se fazia sentido aquilo que eu achava ser verdade. Agora, ao relê-lo, continuo a remoer na história. A minha primeira impressão não mudou. Talvez tenha sido intensificada. No dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às 5.30 da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo…
Título original: Crónica de una muerte anunciada
Título em português: Crónica de uma morte anunciada
Autor: Gabriel García Márquez
Ano: 1981 (PT: 2014)
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*ao comprares através destes links eu ganho uns cêntimos, que poderei usar para comprar mais livros.
Sinto a tua dor! Porque acho que li todo o livro com a mesma revolta. E, depois, refleti sobre a mesma questão, porque acabamos por ter o mesmo tipo de comportamento, mais cedo ou mais tarde [não quer dizer que seja em relação a um possível crime, mas quantas já não deixamos de fazer por termos o mesmo pensamento?].
Este livro está extraordinário. Tornou-se um dos meus favoritos *-*
Obrigada por me compreenderes! Para um livro tão pequeno, dá muito que pensar!
Daqueles livros que quero mt ler, mas quando não sei
O mais depressa possível, espero!
Li cem anos de solidão e adorei! Quanto a este, já tinha visto uma review de uma booktuber brasileira que adoro – a Isabella Lubrano -, e desde então, que o incluí na minha lista de desejos. Claro que, a tua review intensificou ainda mais esta minha vontade! ♥
Beijocas,
https://imperiumblog.com/2020/08/podcasts-que-tenho-ouvido-ultimamente/