Se fosse hoje, como seríamos nós?

Se te conhecesse agora, será que sentiria o mesmo? Será que tu sentirias o mesmo? Às vezes dou com estas perguntas a pairar sobre as memórias. Vi que agora gostas de Harry Potter. Não me lembro de gostares disso antes. Será que gostavas e eu não sabia? Será que passaste a gostar depois? Talvez tenhas passado a gostar depois.

Será que ainda distribuis abraços como quem diz bom dia? Saberás que deixei de ouvir as músicas que tu ouvias? Se fosse hoje, como seríamos nós? Pergunto-me que vinho bebes agora. Tinto, certamente, pois era o que dizias ser melhor, o que dizias que havias de me ensinar a apreciar. Será que se fosse hoje cumprias o prometido e não ias embora antes de me ensinar a gostar de vinho?

Reparei que agora já não fumas. As fotografias das saídas com os teus amigos têm cigarros distribuídos nas mãos de todos menos nas tuas. Pergunto-me a que cheiras agora, se já não cheiras a tabaco e Paco Rabanne.

Vi que ela não usa batom. Lembro-me tão bem de quando falavas dos meus batons, de como parecias desejoso de arruinar lábios vermelhos. Será por isso que ela não usa? Ou será que já não toleras beijos manchados de Ruby Woo?

Será que ainda te demoras nos mesmos corredores da Fnac ou já não olhas para a literatura traduzida à procura de livros dos meus autores preferidos? Ainda achas engraçado que tentem tocar piano à tua frente ou é frustrante tê-la ao pé dos teus dós em crescendo? (Foste embora antes de me ensinares a tocar a let it be…)

Sei que ela tira muitas fotografias tuas e acho estranho. Eu tirava muitas fotografias a tudo o que te rodeava e tão poucas a ti. Será que se tivesse fotografado em função de ti ainda estavas aqui?

Por muito que te veja saudável, pergunto-me se ainda tens um rácio ketchup-maionese completamente absurdo. Será que ainda bebes café como eu bebo água? Ainda terás a banda sonora certa para tudo? Talvez tenhas, pelo menos soubeste precisamente que música deixar antes de ires embora.

Pergunto-me o que dirias agora. Já esqueci quase todas as palavras que me disseste. Talvez ainda me quisesses comparar a todas as raparigas que eu não conhecia, só para criares fantasmas que nunca poderia derrubar.

Durante algum tempo, perguntei-me como seríamos nós, se fosse hoje. Tudo o que vira em ti tentava encontrar nos outros. Tudo o que dizias, fazias, ouvias. Quando encontrava, sempre que encontrava, só queria fugir. Se fosse hoje, não seríamos. Se fosse hoje, as opções seriam exclusivas: ou arruinavas o batom ou arruinavas a pessoa. Nunca poderias arruinar ambos — ou o batom ou eu.

Se fosse hoje, não seríamos. Já não pareces tão interessante agora. Definitivamente, já não somos as mesmas pessoas agora. Se fosse hoje, não seríamos nós.

3 Replies to “Se fosse hoje, como seríamos nós?”

  1. Já tinha pensado nisso há uns anos, na bagagem de informação que levamos sobre pessoas que passam por nós – em todos os tipos de relação – e deixam pedaços de si que levamos connosco e associaremos eternamente a essa pessoa (mesmo quando já não fizerem parte da sua identidade). Foi assim que as conhecemos.

    A citação de que levamos um pouco dos outros e eles levam um pouco de nós está tão certa, mas nunca desenvolve que ‘pouco’ é esse que fica e vai. É quase como que um souvenir de quem já fomos, de quem eles já foram: não tem propósito utilitário nenhum, é simplesmente uma recordação de por onde (e quem) passámos 🙂

    1. Ai, Inn! Que comentário bom, porque foi mesmo com esses sentimentos em mente que escrevi o texto, com vontade de despertar também essa reflexão além das relações amorosas.

  2. Ai o quê 🤯 já li muita coisa tua, já me apaixonei e guardei na memória. Mas este texto… não sei com que purpurinas temperaste as palavras, mas vi-me refletida! 😲
    Whoaaa, abre aspas

    “Ainda terás a banda sonora certa para tudo? Talvez tenhas, pelo menos soubeste precisamente que música deixar antes de ires embora.”

    Vou apenas sentir! Obrigada!

    Lyne, Imperium BlogCongresso Botânico – PodcastLivro DQNT

partilha a tua teoria...