Sobre estados civis e estados de alma

Quando tinha 5 anos fiz uma queimadura de 2.º grau na perna esquerda e, ainda assim, aqui estou eu a brincar com o fogo. Isto foi exactamente aquilo que pensei naquela manhã de Fevereiro enquanto me afastava da estação de metro da Trindade. Coloquei os fones nos ouvidos, reputation no Spotify, e agradeci o facto de estar a usar uma máscara — com máscara ninguém podia ver o sorriso ridículo com que fui caminhando pelos Aliados. Aquele ar de quem sabe que está prestes a tomar uma decisão arriscada: permitir que alguém entre na sua vida.

Eu estive quase para não sair de casa naquela manhã. Quando aquele café começou a ser uma possibilidade, uns dias antes, eu mal tinha instalado o Tinder e já estava com dúvidas e com vontade de desistir. Mas aquele foi o meu primeiro match e a minha primeira conversa naquela aplicação. Aceitei o café com facilidade e depois comecei a pensar que, se calhar, era melhor cancelar. Porquê? Medo, inseguranças, preguiça, sei lá. Mas eu fui. Até ao último segundo a pensar como era terrível se me deixasse pendurada. Acho que nunca mais combinava saídas. Mas ele foi.

Sem saber, naquela manhã em que toda a gente falava sobre a guerra que tinha começado na Ucrânia no dia anterior, eu tinha à minha frente a pessoa que me ia fazer questionar todas as minhas certezas e incertezas sobre amizades, relações e séries da Marvel. Mais do que isso, tinha à minha frente a pessoa que me ia fazer questionar praticamente todas as semanas quanto é que uma pessoa pode mudar a outra em pouco tempo? Não tenho respostas, mas sei que agora digo tranquilo demasiadas vezes, que uso o elevador para andar entre o piso 0 e o piso 1 e que a Sofia de Janeiro iria olhar chocada para as conversas da Sofia de Maio.

Então, o que mudou naquele 25 de Fevereiro? Tudo e nada. Talvez o mais curioso não seja pensar no que mudou naquele 25 de Fevereiro. Talvez seja pensar no que me faz escrever tudo isto neste 25 de Maio. Há dois dias senti tudo escapar-me e quase fui destruída por palavras… as minhas palavras. Ontem, sentada na única esplanada desta cidade onde corria o risco de desabar, esvaziada de vontade, perdida de sentimentos, de repente tive a certeza de que, se sair queimada, continuarei a guardar aquilo que é só nosso como uma das melhores decisões de 2022.

É por isso que estou a terminar o meu 25 de Maio a escrever um texto que diz tanto ao mesmo tempo que não diz o que quer que seja. Dificilmente me apanharás a tentar descrever novamente o que me vai na alma, a descrever os beijos, os toques, o bater do coração quando estou a adormecer encostada a ele, as sensações, os erros, as dores de crescimento. Dificilmente me verás colocar em palavras como desafiamos as regras, como somos amigos, mas não somos bem amigos, como não há qualquer outra situação em que quisesse estar agora.

Mas facilmente me encontrarás com a certeza de que para duas pessoas se darem uma com a outra é preciso aprender muito, confiar muito e ter a consciência de que tudo é tão frágil quanto aqueles copos de vidro barato que partem em milhares de bocadinhos mal os pousas com um pouco mais de força. A mesma certeza de que nem sempre a forma como lidamos com as coisas sozinhos é a forma certa de lidar com as coisas com os outros, de que comunicar não é sempre fácil e de que a Taylor tem razão: if I get burned at least we were electrified. Os pormenores desta electricidade são nossos, só nossos, mas são eles que nos mantêm vivos agora. E como é bom sentir-nos vivos.

Talvez um dia me vejas escrever sobre como fui apanhar sentimentos às coisas mais pequenas, sobre como os toques mais simples trazem as sensações mais poderosas, sobre como cada beijo de despedida me faz querer puxá-lo para mim e não o largar mais. Mas não posso. Não posso escrever agora nem posso puxá-lo quando ele tem de ir embora.

Ele volta, acabo sempre a dizer a mim mesma. Tirando a primeira vez, sempre acreditei que ele voltava. Tirando a primeira vez, sempre acreditei que tenho aqui uma das melhores coisas da vida neste momento. E como qualquer coisa boa da vida, às vezes fazemos merda, às vezes deixamos que os medos e as inseguranças nos tirem a racionalidade. Como qualquer coisa boa da vida perguntamo-nos se a merecemos realmente. Como qualquer coisa boa da vida sonhamos mantê-la para sempre. Ou, vá, por muito tempo porque sabemos que não há para sempres. 

E é por isso que dou por mim a escrever sobre ele assim neste 25 de Maio. Talvez seja a ressaca dos beijos, das saudades, de quem quase fodeu tudo há dois dias. Talvez seja a necessidade de registar para um dia saber que existiu, que aconteceu, que senti. Nestes jogos que vamos jogando, acho que realmente ou ganhamos juntos ou perdemos juntos. Há três meses deixei uma pessoa entrar na minha vida. Não sei quantos meses é que ele quer ficar, mas ele que fique. Eu só quero mesmo aproveitar a viagem, mesmo quando houver turbulência. 

3 Replies to “Sobre estados civis e estados de alma”

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