clubes de leitura: a leitura como lugar de partilha

Há uma certa necessidade de convívio nas pessoas. Ir para o café ver o jogo de futebol, juntar a família à volta da televisão na hora da novela, ver uma peça de teatro junto dos outros. Mesmo as experiências e atividades mais individuais parecem pedir algum convívio, alguma relação com os outros. Ler, algo tão individual, não fica longe dessa necessidade.

Quando comecei a estruturar a tese e decidi que o Livra-te seria estudo de caso percebi que ia ter de tocar num assunto no qual não tinha pensado até ao momento: os clubes de leitura. O tema em si já dava toda uma tese, mas eu só ia abordá-lo levemente. Claro que depois de ter defendido o trabalho e ter tido férias do meio académico comecei a pensar que se calhar devia voltar ao assunto. Não quero apresentar-te um artigo científico, mas quero falar um bocadinho sobre clubes de leitura, falando dos dois em que participo — o Livra-te e o The Characters Club (abordado levemente na tese também).

Ler o que o outro também está a ler

Aquilo que mais me interessava pesquisar estava relacionado com a ideia de ler o que o outro também está a ler. Tinha estas palavras a pairar, um bocadinho a pensar na frase do When Harry Met Sally, a do I’ll have what she’s having. Era uma questão fundamental para compreender o fenómeno do Bookstagram e do Booktok e levava-me à ideia de comunidade digital. Percebi logo que comunidade não ia ser um conceito fácil de definir academicamente, mas também percebi que o caráter relacional associado às comunidades era o ponto de partida para tudo o resto.

O ser humano é um ser social, que vive melhor em comunidade, em relação com outros seres. De uma maneira ou de outra, todos ambicionamos pertencer a um grupo — o clube de futebol que apoiamos, o artista de que somos fãs, o partido de que somos militantes, etc. — pelo que é normal que, no mundo online, acabemos a procurar precisamente os grupos aos quais queremos pertencer.

Aqui li alguns autores que têm pesquisa feita sobre comunidades digitais. Algo que eles referem é que nestes grupos digitais os seus membros sentem-se realmente parte de uma comunidade. Além disso, defendem que há algumas fontes de motivação para fazer parte daquelas comunidades: desde o interesse pelo tema ao altruísmo, à expectativa de reciprocidade e à possibilidade de criar e manter relações com os membros daquela comunidade. No fundo, queremos fazer parte de um grupo que represente um tema que nos interessa e, ao escolhermos fazer parte desse grupo, esperamos partilhar algo com os outros membros, receber as partilhas dos outros e, em diálogo, estabelecer algum tipo de relação com essas pessoas.

Os Clubes de Leitura Tradicionais

Durante muitos anos achei que o conceito de clube de leitura era algo exclusivo da ficção americana. Nunca tinha sequer ouvido falar de clubes de leitura tradicionais reais. No entanto claro que eles existiam. Aquele grupo de pessoas que se juntava para debater o mesmo livro, de forma mais ou menos informal. Na ficção eram muitas vezes mães e donas de casa, mas havia grupos para todos os gostos.

O conceito era simples: escolhia-se um livro, marcava-se uma data e um local e nesse dia o grupo reunir-se-ia para falar sobre o que tinham lido. Na ficção essa reunião incluía comida e bebida, normalmente vinho, mas não tenho nenhum relato real de que isto acontecesse assim fora da ficção.

A verdade é que até podiam ser só os amigos mais próximos, mas havia ali o contrariar da tendência solitária da leitura. O problema? Se vivêssemos longe de amigos ou não tivéssemos conhecimento de grupos do género na nossa zona continuávamos a ter uma experiência solitária. Além disso, havia um limite de participantes. Normalmente eram clubes pequenos, até para haver espaço para todos.

O Digital Replica o Tradicional

A internet veio resolver esta última questão. Primeiro porque havia fóruns sobre mil e um temas. Depois porque entre blogs e redes sociais as pessoas podiam partilhar, para quem as seguisse, os seus gostos e as suas leituras recentes. A interação ainda era limitada, porque estava dependente dos comentários dos seguidores, mas já havia interação.

E é então que começam a surgir adaptações digitais de clubes de leitura. A Oprah, a Reese, a Emma Watson… as celebridades estavam a criar os seus grupos através dos livros. Era qualquer coisa. Mas como a internet democratizou muita coisa também pessoas comuns começaram a ter uma base de seguidores importante o suficiente para terem os seus próprios grupos. No fundo, se confiamos nas sugestões de alguém que seguimos então possivelmente vamos estar disponíveis para participar num grupo com elas e podemos finalmente estar em qualquer ponto do mundo porque sabemos que a interação será maioritariamente online.

O sentimento de pertença a um grupo é replicado no digital. Interagimos na mesma, muitas vezes até interagimos mais e mais regularmente, e cria-se uma conexão entre pessoas que até podem não se conhecer pessoalmente, mas com as quais se conversa regularmente.

Escolher os Clubes de Leitura em Que Vamos Participar

Acho que uma das coisas mais fascinantes e, por vezes, assustadoras da internet é que há gostos para tudo. Encontras facilmente perfis especializados nos géneros literários de que mais gostas, seja mais ou menos vendidos, e, por isso, encontras mais facilmente a tua comunidade. Se antes podia haver dificuldade em encontrar pessoas que gostassem de ler as mesmas coisas que nós lemos, hoje isso é ultrapassado com uma pesquisa nas redes sociais.

Quando comecei a querer participar em clubes de leitura esta ideia de encontrar livros dentro dos géneros de que gosto foi o que mais me atraiu. Confesso que, no início, a ideia de clube de leitura me deixava de pé atrás porque não sabia até que ponto conseguiria participar regularmente se tivesse de comprar livros novos todos os meses e porque não sabia se me identificava o suficiente com o gosto das pessoas que os organizavam. Para mim há algumas coisas fundamentais na hora de escolher os clubes de leitura em que participamos:

  • O tipo de livros lidos;
  • Como funciona a interação;
  • O quanto me identifico com as pessoas que o organizam.

No fundo, isto vai um pouco ao encontro daquilo que já tinha referido em cima: se quero fazer parte quero poder participar de forma mais ou menos regular e quero sentir que pertenço ali.

O Clube do Livra-te

Participar no Clube do Livra-te era uma inevitabilidade. Acompanho a Rita há muito tempo e sabia que tínhamos um gosto literário semelhante. Com o podcast, que surgiu primeiro, fui também percebendo o gosto da Joana e, por isso, sabia que podia vir dali uma complementaridade interessante de acompanhar.

O Clube do Livra-te tem três particularidades:

  • Há duas escolhas por mês (uma de cada apresentadora);
  • Elas lêem os livros ao mesmo tempo que nós lemos, sem qualquer curadoria prévia. Vamos todos à descoberta, no fundo;
  • Com o grupo de discussão no Discord surgiu também a possibilidade de uma terceira leitura conjunta mensal, votada pelos participantes.

O Livra-te foi o meu estudo de caso da tese e, por isso, passei semanas a estudá-lo e podia até apresentar-te aqui conceitos teóricos sobre ele, mas aquilo que de mais interessante tenho a dizer não precisa dos conceitos. O Livra-te tem aqui duas vertentes muito boas: por um lado, é um podcast, que podes acompanhar sem participar nos grupos de discussão e sem ler os livros do mês; por outro lado, tem um grupo de discussão que é mais do que um clube do livro, onde se fala de muita coisa e até se comentam os episódios. Esta ideia de comunidade à volta do Livra-te conquistou-me de imediato.

Claro que, como são dois livros por mês (ou três), não participo nas leituras todos os meses e, quando participo, nem sempre leio todos. Tento ir pelos que já tenho para ler ou por aqueles que já quero ler há mais tempo. Também acontece estar a ouvir o episódio de discussão e perceber que, afinal, um livro que achava que não era para mim até pode ser.

O The Characters Club

O The Characters Club, apesar do nome e da comunicação em inglês, também é português. Neste caso a Carolina e a Inês funcionam como curadoras literárias e escolhem um livro para o grupo ler e discutir a cada mês, também com interação no Discord. Uma das minhas coisas preferidas é que todos os livros têm uma playlist associada a eles, um pormenor que acho particularmente bonito.

Além desta curadoria, há outra particularidade no The Characters Club: para se fazer parte do grupo é necessário fazer uma inscrição e ficar em lista de espera. Embora elas comuniquem posteriormente no Instagram qual o livro do mês, quem não faz parte do grupo não tem acesso ao grupo de discussão. É uma espécie de clube exclusivo.

Então o que fica dos clubes de leitura?

Os clubes de leitura vieram transformados para ficarem. Acho que é uma experiência diferente que até pode ajudar a formar hábitos de leitura mais definidos e a conhecer livros diferentes.

O facto de serem digitais criam ainda outra oportunidade: se não puderes ler um livro no mês em que ele é discutido no grupo podes voltar mais tarde e participar a discussão nessa altura. Para mim, que nem sempre posso ou quero comprar aqueles livros naqueles meses, é uma mais-valia indiscutível. Além de que se aderes ao clube mais tarde ficas com hipótese de explorar os mesmos livros na mesma.

No caso dos dois clubes que mencionei, muitas vezes há também conversas paralelas e acho que esta partilha de livros e ideias pode ser enriquecedora se for bem aproveitada.

No fundo, é encontrares o teu núcleo e deixares que ele te mostre como podes ter um grupo com o qual te identificas e com o qual podes partilhar algo de que gostas.

A minha tese de mestrado tem como título “Promoção e Divulgação da Literatura no Meio Digital” e aborda maioritariamente o Bookstagram e as comunidades literárias digitais, com o Livra-te como estudo de caso e algumas análises de publicações de criadores de conteúdo. Sim, arranjei forma de juntar o marketing, as redes sociais e a literatura. Está disponível para leitura no Repositório Aberto da Universidade do Porto ou, mais facilmente, através do link abaixo. 

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