Influencers em Belém, literatura light e os dramas da internet

Na semana passado aconteceu algo absolutamente polémico em Portugal. Então não é que o Presidente da República, que, caso não saibam, é o professor Marcelo Rebelo de Sousa, convidou uma série de criadores de conteúdo, de várias áreas, para um encontro no Palácio de Belém? How dare you?*

Bem, talvez não deva dizer criadores de conteúdo. A palavra devia ser influencer, não é? Para a indignação funcionar melhor. Vou refazer: então não é que o Presidente da República convidou uma série de influencers para um encontro no Palácio de Belém? How dare you?*

De uma forma resumida foi realmente isso que aconteceu. O Gabinete do Presidente da República escolheu várias personalidades com impacto na comunidade digital para uma reunião com o Presidente, onde, pelo que soube, foram discutidos vários temas e de onde irá sair um projecto maior (pelo menos é o que todos dão a entender nas descrições do Instagram).

Qual é o problema de o Presidente da República reunir com influencers em Belém?

Como é óbvio, a reunião causou polémica. Porquê? Ora, não sei dizer ao certo. Honestamente, não sei mesmo dizer. Qual é o problema de o Presidente da República reconhecer que há personalidades que têm influência e reunir com elas? Não é a primeira vez que tal acontece no mundo. Claro que nem todas as pessoas presentes demonstram de forma evidente uma relação com política… mas há várias formas de o fazer. E assumir posições em relação a vários temas sociais é uma delas.

Uma das pessoas presentes no encontro foi a Sónia Morais Santos, do blog Cocó na Fralda. A Sónia já foi por duas vezes convidada a ir ao Parlamento Europeu porque na União Europeia reconheceram o trabalho dela como algo importante e com impacto social. Para mim é mais do que óbvio que só isto mostra que o encontro em Belém faz sentido. No entanto, já sabemos que nas redes sociais tem de haver sempre uma polémicazinha semanalmente (no mínimo). Caso contrário torna-se aborrecido, não é?

Para mim, o Presidente da República querer perceber mais deste mundo em que há influenciadores é positivo. E se o que vem a seguir é uma campanha para incentivar à participação eleitoral e social… venha ela! Não estão sempre a dizer: já viram se os influencers incentivassem ao voto? Se calhar deviam mesmo fazê-lo. Aliás, não é se calhar. Todos devíamos incentivar as pessoas que conhecemos a votar, não importa se somos ou não influencers. Eu não sei quem foram todos os convidados para a reunião e não vou defender a presença de cada um deles, mas acho que é um bom passo do professor Marcelo tentar compreender como chegar a mais pessoas (não só como forma de fazer campanha antes do período eleitoral) e como é que estas e outras personalidades podem ter impacto a nível social e político. A parte engraçada veio depois.

Influenciadores irritam redes sociais, jornalistas irritam influenciadores.

Se a reunião de influencers em Belém irritou os utilizadores de redes sociais, a cobertura jornalística irritou os influencers. Com um bocadinho de razão, diria eu. Primeiro, porque não houve um grande esforço dos jornalistas em saber aquilo de que tinham falado na reunião. Queriam só dizer as áreas em que cada convidado trabalha, quase como forma de minimizar e gozar com a situação. Não era muito difícil saber os temas discutidos. Se não conseguiam contactar o Gabinete do Presidente da República era só irem ao Instagram e perguntarem directamente aos participantes. Não é assim tão complicado. Mas vá, por mim estava tudo bem, honestamente. Eu não teria lido as notícias se não tivessem partilhado excertos delas. Foi num desses excertos que li um conceito que me chateou.

A literatura light – porque agora é tudo light, sem calorias, sem hidratos, sem noção

Uma das pessoas presentes em Belém foi a Helena Magalhães. A Helena tem cerca de 26 mil seguidores no Instagram. Um dos maiores focos de trabalho da Helena é a nível da literatura. Por isso, criou o @hmbookgang, que conta, à data de escrita deste texto, com 6688 seguidores. Repararam como eu disse literatura? Só literatura? Sem mais nada? É que para o Público não chega ser literatura. Tem de ser light. Raios partam esta mania das dietas!

Literatura light é um conceito curioso. Eu, por acaso, digo muitas vezes que um livro foi uma leitura leve, mesmo quando trata assuntos pesados. No entanto, não divido a literatura por peso, como se fosse um combate de judo. Não há livros -40kg, +70kg. Há livros. Ponto final. Uns têm uma escrita mais densa, pesada e por vezes difícil. Outros têm uma leitura mais acessível, descomplicada. É como em tudo na vida.

Agora virem com termos como literatura light com o objectivo de minimizar e a certo ponto ridicularizar a reunião que aconteceu em Belém? Amigos, deixem-me só lembrar o primeiro ponto do Código Deontológico dos Jornalistas: A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público. Para mim não ficou. E tenho a certeza de que se tivesse incluído isso numa notícia nos tempos de faculdade tinha os professores todos a atirar-me o Código Deontológico à cara.

Eu percebo que os jornalistas são pessoas e têm opiniões. Mas têm lugar para as dar. Também percebo que nem todas as pessoas vejam a ida dos influencers a Belém da mesma forma. Mas qual é a necessidade de ofender a literatura? Que mal é que ela vos fez? Tentou abrir-vos a mente? Pffft, estes escritores a tentarem dar mundo aos leitores! How dare they?**

Está na altura de reconhecermos o papel dos influenciadores… e de eles o reconhecerem também.

Apesar de já existirem há uns anos, isto dos criadores de conteúdo, influencers, ainda é algo muito novo para Portugal. Não sabemos ainda lidar muito bem com eles, não sabemos o que fazer com eles. É quando nos oferecem um belo pano de renda para o enxoval e aceitamos porque não sabemos recusar mas depois não sabemos o que lhe fazer: não vamos usar porque não faz o nosso estilo, mas também não podemos deitar fora à descarada. Vamos guardar no fundo do armário? Vamos fingir que não existe? Vamos reclamar sobre o pano a toda a gente?

Eu defendo que está na hora de reconhecermos o papel dos influenciadores na sociedade actual. Não digo que temos de gostar de todos (eu também não gosto), mas temos de respeitar e reconhecer que chegam realmente a muita gente e que se usarem isso como forma de propagar mensagens positivas então temos ali vozes poderosas. Não pode ser só partilhar códigos de desconto, produtos incríveis e outfits invejáveis. É preciso mais. Temos também de exigir mais.

E por isso está também na hora de os influenciadores reconhecerem o papel que têm e que devem ter. Não digo que tenhamos de exigir a um influencer que diga em que partido votou. Mas acho importante sabermos as causas que defende. E acho importante que incentivem ao voto, que falem da importância de votar. Não só quando o artigo 13 vai a votos ou quando o Presidente da República os convida para ir até Belém, mas também noutras ocasiões. Ninguém está a pedir que parem de falar de maquilhagem ou do que quer que seja que falam. Não, ninguém pede isso. Mas acho que está na hora de perceberem que se têm uma voz devem saber usá-la para causas importantes. E talvez esta reunião em Belém tenha dado food for thought a muitos criadores de conteúdo, de todos os níveis, mesmo aos que (ainda) não o são.

*escrevi isto a pensar na Greta Thunberg a perguntar o mesmo no tal discurso (também polémico) que ela deu na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, no dia 23 de setembro.
**e depois gostei demasiado da expressão. Preciso de parar.

2 Replies to “Influencers em Belém, literatura light e os dramas da internet”

  1. O mal de tudo isto é que ainda vivemos numa sociedade muito quadrada. E, depois, ouvem-se e leem-se coisas ridículas como esses conceitos de literatura light… Honestamente, não tenho paciência para esta falta de respeito camuflada [e, talvez, mal camuflada].
    Não sei quem foram todos os convidados, mas fico contente por haver esta abertura por parte do nosso Presidente, porque é sinal que está atento

  2. Esse conceito de literatura light deveria ter sido considerado uma ofensa por todos os autores e editoras. Mas não me surpreende. Num mundo onde próprios profissionais do cinema dizem que filmes da Marvel não são cinema em comparação com os próprios, não me surpreende. É triste, mas ninguém parece importar com as novas formas de conteúdo, interação e imaginação.

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