Lisboa era uma espécie de cidade prometida. El Dorado português. Lisboa tinha tudo, era tudo, podia tudo. Lisboa tinha os centros comerciais e as lojinhas da Baixa, tinha os cinemas e os supermercados gigantes, tinha a praia e os jardins, tinha as oportunidades e os oportunistas. Durante uns tempos, Lisboa foi casa. E depois começou a cansar-me. Sentia que Lisboa me estava a rejeitar como um transplante que corre mal então comecei a rejeitá-la também.
Dizem que só sabemos a força de uma relação quando podemos ver as qualidades e os defeitos do outro lado e, amigos, eu estava a ver os defeitos todos de Lisboa e já não tinha paciência. Lisboa tinha sido boa para mim durante quatro anos, mas aquela tentativa de regresso não ia ser igual. Rejeitámo-nos mutuamente. Ela atirou-me para a periferia, numa casa partilhada entre sete pessoas com uma renda a roçar o inaceitável e um salário mínimo que me fazia contar trocos todos os meses. Eu atirei-a para o topo da lista dos locais onde nunca mais queria viver.
Não fiz as pazes com Lisboa assim que me vim embora. Ainda tinha demasiado medo de ser puxada de volta. No entanto acho que a partir do momento em que a vida se começou a alinhar para vir para o Porto consegui fazer as pazes com Lisboa. Não é que eu a odiasse profundamente; só não queria tê-la todos os dias na minha vida. Doses controladas e temporárias são aquilo que o doutor recomendou e é o que funciona comigo.
Esta semana assinalam-se dez anos desde que me mudei para Lisboa pela primeira vez e entre o livro que estou a rever, ter lido A História de Roma há pouco tempo, ter marcado um fim-de-semana de 2024 em Lisboa e estar já em modo 1989 (Taylor’s Version), tenho pensado muito em Lisboa. Aliás, tenho pensado muito no que Lisboa trouxe para a minha vida.
When we first dropped our bags on apartment floors
Took our broken hearts, put them in a drawer
Everybody here was someone else before
Tens 18 anos e acabaste de chegar a uma cidade grande. O que é que fazes? Desenrascas-te!
Lisboa trouxe-me uma característica muito portuguesa de que, até então, nunca precisara: o desenrasque. Até ir para Lisboa se ia para a escola ia de autocarro, se precisava de outra coisa qualquer ia de carro. O autocarro era escolar, vinha sempre à mesma hora de manhã e voltava à mesma hora de tarde. Em Lisboa toda a vida era feita em transportes.
Entre aprender linhas de metro e de comboio naquelas primeiras semanas e, depois, aprender a movimentar-me a pé pelos bairros onde vivi, Lisboa trouxe-me várias coisas que ainda hoje acontecem: a chave na mão sempre que ando sozinha na rua à noite, a mochila para ir às compras (mesmo agora, quando vou de carro, trago as compras do carro para casa na mochila), aprender os percursos dos transportes públicos e conhecer as zonas a pé para o caso de precisar de sair numa paragem diferente. Saber sempre onde é a farmácia mais próxima, o supermercado mais próximo, a lavandaria self-service mais próxima. Falha a luz: sabes ir ver se foi o contador que foi abaixo? O esquentador está desligado: sabes ir ligá-lo? A vida pede que sejas adulta: sabes ser adulta?
Aprendi a dividir casa e tarefas, a resolver pequenos problemas que demorariam semanas até os senhorios mostrarem interesse, a sair de um lugar e chegar a outro sem pensar no percurso. Lisboa ensinou-me a ser adulta, ninguém lhe pode tirar isso.
O que é que Lisboa tem que mais nenhuma cidade te pode dar?
Logo no primeiro ano, uma das minhas atividades preferidas sempre que não tinha aulas era deambular pelas ruas de Lisboa. Apanhava muitas vezes o metro ou o comboio para o centro ou para a Baixa e simplesmente ia. Explorei a maior parte de Lisboa sozinha e, mais tarde, com amigos que não eram de lá. Fui assistindo à transformação de Lisboa de uma capital europeia normal para uma capital europeia na moda. E tentava ir a quase todos os lugares.
Subia e descia o Chiado, lia à beira Tejo quando ainda era possível fazê-lo tranquilamente no Cais das Colunas ou no resto da Ribeira das Naus, ia a museus onde nunca tinha ido. Só não aproveitava mais quando o orçamento não permitia.
Lisboa ensinou-me a estar na minha própria companhia. Apesar de ser filha única e estar habituada a estar sozinha em casa (ou com as minhas cadelas, vá), não sabia realmente o que era estar sozinha até chegar a Lisboa. Lisboa ensinou-me o lado bom e o lado mau de estar sozinha. E se o lado mau é o que é, o lado bom é o que ainda hoje me faz não ter medo de enfrentar ruas desconhecidas no Porto, pegar no carro e ir para uma praia desconhecida ou simplesmente decidir que vou sair noutra estação e fazer o resto do percurso a pé.
Quando chegar a meia-noite e o feitiço se desfizer o que é que vais fazer?
Lisboa ainda é, em parte, a cidade prometida, mas já não é a mesma cidade prometida de há dez anos. Lisboa é a cidade do burburinho constante, das rendas impossíveis, das promessas por cumprir. Lisboa é a cidade de quase todos os eventos, de quase todos os concertos, de quase todos os monumentos.
Mas Lisboa cansou-me. Cansou-me quando eu demorava 50 minutos a fazer um percurso de cinco quilómetros. Quando as rendas começaram a subir insustentavelmente. Quando as tais oportunidades eram apenas oportunidades para ganhar o ordenado mínimo e contar trocos. Quando tudo na cidade me começou a causar claustrofobia, até os lugares ao ar livre.
Se eu e Lisboa nos encontrássemos no Tinder não daríamos match. Se eu fizesse um teste para saber que cidade combina com a minha personalidade o resultado não seria Lisboa. E está tudo bem. Eu nunca disse que queria Lisboa para o resto da vida: eu queria Lisboa para estudar Jornalismo e tive-a.
Lisboa será sempre uma das cidades onde cresci. Terá sempre a beleza e tranquilidade do Parque Botânico do Monteiro-Mor e a familiaridade de Benfica, por mais obras que lhe façam. Terá sempre a vantagem de estar perto de uma das vilas mais icónicas e bonitas de Portugal (Sintra, claro). E claro que será sempre a cidade onde haverá mais concertos, festivais e coisas interessantes a acontecer. Felizmente também é a cidade onde muitos comboios e autocarros vão dar e desta vez já não preciso de chorar convulsivamente na estação do Oriente por não conseguir ir para casa, por isso está tudo bem.
Lisboa é diferente para quem nasceu e viveu lá toda a vida e para quem foi para lá depois. Para nós que fomos para lá depois há sempre um ou vários termos de comparação. Há sempre algo em que sentimos que aquela não é mesmo a nossa cidade. Às vezes é só pela pronúncia (felizmente, só me apanhou em três ocasiões), outras vezes é pelo acesso à habitação, mas muitas vezes é por todas as razões e nenhuma em específico: é só porque é assim que Lisboa é e é assim que nós somos e não ligamos de forma perfeita.
Já me perguntaram se me arrependo de ter ido para Lisboa quando podia ter tentado vir logo para o Porto e, sinceramente, nunca me arrependi de ter escolhido Lisboa. Arrependi-me de voltar depois, mas de ter ido nunca. Lisboa era-me familiar e, mesmo assim, foi uma mudança dura. Não teria sido tão fácil se tivesse ido para um lugar que não fosse familiar e sem conhecidos por perto. Além disso, Lisboa ajudou a formar uma parte do que sou hoje. Lisboa trouxe-me perspetivas, mundo, cenários para histórias.
Costumava achar que Lisboa era um bocadinho como a Nova Iorque de que a Taylor falava no 1989: havia lugar para todos, todos podíamos chegar lá e ser quem quiséssemos ser. Agora acho que ainda não é bem assim, mas a culpa não é dela. Ela permitir-nos-ia ser quem quiséssemos, mas enquanto podes ir a chorar no metro e ninguém quer saber o mesmo não acontece em tantas outras situações em que ainda receberás olhares.
Lisboa não é o el Dorado, embora tenhamos tentado convencer os nómadas digitais de que é. Lisboa foi casa quando eu não sabia o que era ter mesmo uma casa. Lisboa tornou-me adulta enquanto ela própria se parecia tornar adulta. De certa forma também crescemos juntas. Ela quis o movimento, o turismo e a bolha imobiliária. Eu quis trocar vês por bês. Não voltaria a viver em Lisboa. Mas sei que por mais alojamentos locais que surjam, voltarei sempre a Lisboa com a mesma sensação de familiaridade. Só não é casa. Talvez nem tinha sido bem casa, mas porto de abrigo enquanto eu não encontrava casa.
Aprecio Lisboa para um passeio mas nada mais que isso. Sou da zona do Ribatejo com os seus campos verdes e tranquilidade, então Lisboa é para mim demasiado stressante. Não me imagino sequer se alguma vez fosse forçada a fazer dela a minha casa. Acho que panicava na primeira semana 🫣