Guest Post: Eu, ser humano, mulher negra

Eu, Ser Humano, Mulher Negra
Carolayne Ramos
Blogger

 

Este texto foi escrito ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico. Foi escrito para este projecto e é reproduzido aqui com autorização da autora.

 

Não se trata de agora tudo ser racismo

Trata-se, antes, da consciencialização social para com atos racistas que nunca foram interpretados como tal. Essa iniciativa para o despertar parte não só das chamadas de atenção das vítimas, que, aos poucos, têm explorado a voz que por muitos anos lhes foi retirada, como de extremos infelizes, e que resultam na morte de pessoas inocentes e que apenas sofrem do mal que lhes foi consagrado pela natureza.

Confesso: aceitei este convite, pensei nele, tentei rasurar uns quantos pensamentos, mas nada saía de mim. Voltei atrás na palavra inicial, cogitei no assunto e, após uma tarde de consumo intenso de informações relacionadas, uma vez mais, com o racismo estrutural, concluí que ficar calada, rodeada de um receio irracional de ser julgada e ostracizada, não corresponderia de todo ao ser humano em que me tornei. 

Para além do meu despertar enquanto mulher negra numa sociedade estruturalmente racista, machista, xenófoba, homofóbica, comecei a ficar de pé atrás com imensa coisa, sendo uma delas o diálogo, quando não me vejo capaz de o fazer. Também por medo, receio, revolta, mas por me saber alguém que não gosta de debitar quando não está certa dos conhecimentos que carrega em si.

Para qualquer tipo de problema social, é necessário muito estudo, muita leitura, muita partilha. E julgo ser a primeira vez em que me sinto bombardeada de informações relacionadas com o meu histórico existencial enquanto herdeira de uma cultura muito rica, no entanto desprezada por aqueles que se acharam no direito de a esconder do mundo. Que utilizam como bengala um discurso e atos racistas, para justificar a sua insegurança, ignorância e consequente preconceito. Acredito na premissa de sermos todos preconceituosos, afinal, somos moldados a pensar de determinadas formas, vamos criando filtros e, para alguns, existe um momento de quebra, na qual ganhamos uma nova visão da vida e questionamos tudo o que nos foi ensinado. 

Eis o que se está a suceder comigo.

Contrariamente aos que, perante um choque, utilizam esse impulso para agir, eu paraliso e entro num estado de introspeção, uma tendência um tanto perigosa e que, muitas vezes, resulta num acúmulo exagerado de palavras por dizer, ideias por partilhar, projetos por criar. Porém, quanto ao assunto do racismo, este que sedutoramente já me abordou na rua, nos transportes, nas superfícies comerciais, prefiro não me manter calada. Já chega. 

Atingi um ponto em que já não me preocupo em chamar os demais – pelo menos, os mais próximos – à atenção. Se levam eles a peito e convertem a conversa sobre si, quanto a isso não há muito que eu possa fazer, afinal, não sou guru de ninguém. Contudo, por todas as piadas que tive de engolir, por todos os comentários que tive de suportar, por todos os atos que tive de observar na sombra da educação que me deram e que não pretende ofender nem desrespeitar ninguém… por todos os banhos gelados que o meu psicológico tem vindo a enfrentar, no que toca ao medo de não conseguir um trabalho por ser negra; ao estado de alerta que se liga assim que saio de casa, ciente de que tudo poderá acontecer ou ser dito contra mim… Por tudo o que ainda está por vir, enquanto este problema não se resolver, eu e todos aqueles que são vítimas de atos discriminatórios temos e devemos falar. E, connosco, que se juntem todos os que se preocupam em desmistificar estereótipos, desestruturar a educação que receberam e, de modo autónomo, reeducar-se diariamente.

Ter medo é responder aos abusos dos quais somos vítimas, por crermos que haverá consequências para os nossos lados. Mas nunca me poderei esquecer, eu que nunca tive a sorte de escutar ser demasiado inteligente para uma preta, eu que já escutei ser muito bonita para uma preta, eu que me recordo de ter sido posta de parte por colegas do infantário, a mim a quem já disseram que pensavam que eu seria como os outros pretos-problemáticos-burros-e-desinteressados, eu que me apercebi de que me dou com mais pessoas brancas do que pretas, exatamente pelos preconceitos e estereótipos de volta da nossa etnia, eu… Eu que sou um ser humano como tu, que lês isto; que eu nunca me esqueça de que o medo, quando em excesso, também paralisa e não estimula o progresso.

"O racismo só existe porque falamos dele"

Tive de ouvir isto de uma pessoa com quem me dou, que partilha a minha idade, e em quem, supostamente, sentia que podia confiar. E acredito que se torne fácil incentivar-me a ser a pessoa que poderia chamar os demais à atenção, numa ocasião em que eu me sinta desconfortável e minimizada. Mas sendo honesta? Não é, única e exclusivamente, da minha responsabilidade chamar TODAS as pessoas à atenção, quando elas sabem que determinados assuntos fogem do seu foro de experiências, são mais complexos do que aquilo que nos ensinam diariamente, aniquilam a essência de uma comunidade que merece existir tanto quanto outras e, ainda assim, optam por fazer comentários do género.

Não se trata, simplesmente, de possuir uma opinião. Ter uma/um amiga/o negro, cigano, chinês, muçulmano, etc., não nos isenta de pensar duas vezes antes de mandar piadas e tecer comentários desnecessários, muito pelo contrário! Deveria ser o suficiente para desejarmos juntar as peças e refletir no porquê de aquelas pessoas sofrerem represálias incompreensíveis, existirem em menor número na nossa vida e, acima de tudo, nunca terem falado connosco. Ou porque nunca nos demos ao trabalho de questionar, ora porque a pessoa não se sentia confortável connosco – e independentemente do tipo de relação e do problema de que estejamos a falar, é crucial estarmos constantemente a questionar a razão dos nossos supostos amigos não confiarem em nós! -, ora por estarmos todos em jornadas e estágios completamente divergentes… 

Talvez a pessoa até já te tenha chamado a atenção para determinados detalhes, e a única coisa que soubeste fazer foi levar aquilo de tal modo a peito, transformando a questão sobre ti, que a opção da pessoa foi concluir que não valeria a pena trazer a possibilidade de mudança até às tuas mãos, pois, quando houve oportunidade, não soubeste baixar a guarda e entender que a pessoa que estava à tua frente não queria, de todo, ofender-te e apenas ajudar-te a compreender de que algo estava errado, precisando que colaborasses. Reforçar que uma piada racista nos magoa não é, de todo, afirmar que quem a fez é racista.

Tal como lidarmos com pessoas diferentes não serve para que nos sintamos aptos para as atacar, pois, se eu me dou contigo, é porque gosto de ti, e se gostamos um do outro, temos a liberdade para fazer piadas, mesmo que elas nos incomodem. A isto se chama toxicidade. Abuso de liberdade de expressão. Falta de empatia e consciência.

Quem abusa do poder que tem parte do pressuposto que tem o direito de agir assim, logo, dificilmente quererá escutar o que é que "os seus inferiores" terão para partilhar...

E por muito custoso que seja deixar nas mãos das maiorias – neste caso em específicos, os de etnia branca – a responsabilidade de dar a voz ao anti-racismo, focando nas experiências daqueles que realmente sofrem qualquer ato discriminatório, é importante estarmos conscientes de que, no sistema em que vivemos, esta atitude representa uma aceleração na mudança e no progresso. E se desejamos, enquanto minoria, ver essas mudanças a acontecer, precisamos de domar o nosso ego e deixar, de uma vez por todas, de generalizar como fazem connosco.

Acima de tudo, somos seres humanos e, tal como grande parte de nós não se rege pelos estereótipos que criam acerca da nossa individualidade, grande parte dos demais, de igual modo, não nos deseja mal! Não se trata de dar o braço a torcer, mas sim de uma colaboração humanitária!

Eu não quero que as pessoas sintam pena

Nenhuma pessoa que sofra de qualquer tipo de discriminação precisa de que os demais sintam pena delas. O que precisamos, na verdade, é que quem nos rodeia compreenda que existem problemas exteriores a eles e que, mesmo que não os afete ao ponto de os impedir de procurar uma vida melhor, afetam tantos outros e que, às tantas, perdem a capacidade de ambicionar, por reconhecerem que algures, existirá uma barreira que os impedirá de progredir. 

Eu não quero que as pessoas sintam pena de mim, de todas as vezes em que chego ao meu limite e a única coisa que consigo fazer é chorar, aquando de um diálogo sobre racismo. O que eu quero é que entendam que este assunto se trata de um fardo tão grande, que se torna impossível eu querer sentir, apenas, por mim mesma.

É impossível eu me querer resguardar e limitar as ofensas de que sou vítima como um caso isolado. Eu tenho pais que passaram e passam pelo mesmo. Eu tenho primos. Eu tenho tios e avós.

Eventualmente, e se surgir a vontade, poderei vir a ter filhos, e se toda esta problemática continuar a ser ignorada como tem vindo a acontecer até ao momento, lá terei eu de me preparar para transmitir à criança que ela não é menos do que os demais, somente por um resultado biológico e que a faz ter um tom de pele mais escuro… 

Que, na verdade, de um ponta à outra do universo, somos constituídos por partículas; regemo-nos por energias mensuráveis e outras nem tanto; que temos um coração que bombeia o sangue que nos corre nas veias…. 

Que a nossa existência se resume a isto, no entanto, alguém se achou no direito de se enaltecer perante uma comunidade, pois, não soube lidar com a sua ignorância natural e que nos abarca a todos. Ou trabalhamos o ego e o orgulho e nos dispomos a aprender mais, com uma postura humilde e curiosa, ou fazemos disso uma arma auto-destrutiva e que, consequentemente, afeta os que nos rodeiam.

Conteúdo extra que recomendo:

E como eu jamais poderei falar por cada indivíduo em redor do mundo, convido-te a veres todos os vídeos da Sandra, também conhecida como Uma Africana, assim como a segui-la nas redes sociais.

Explora, de igual modo, o canal e as redes da Ana Paula Xongani, da Yolanda Tati, da Edulany Cardoso e da Núria Serrote.

Ouve, particularmente, os episódios do podcast da Claúdia, do Officina Podcast, com a Edulany Cardoso: A urgência do combate ao racismo em Portugal ; do podcast da Mariana Soares Branco, É preciso ter lata: Para mudar os nossos hábitos (e o mundo) – o título engana, mas aborda o racismo tal como ele merece!; do podcast da Margarida Santos, A Curiosidade Salvou o Gato: o episódio Empatia e outras divagações.

Quanto ao conteúdo que eu crio, podes ouvir dois dos episódios do meu podcast, o da Negritude e excesso de peso no amor e o Eu, Ser humano, mulher negra, de cabelo crespo. Como não poderia deixar de recordar, um desabafo que fiz em 2016, quando entrei na faculdade, e cujas palavras ainda me fazem indagar: Não pedi para nascer assim, mas também não me imagino de outra forma.

Informação é poder e enquanto a pudermos utilizar como estratégia para combater problemas sociais, maior a probabilidade de sucedermos. Como tal, nunca deixem de parte a educação individual, esteja ela relacionada com questões que vos são diretas ou indiretas!

A ti, Sofia, muito obrigada pelo convite, tempo e, acima de tudo, paciência! ♥

Sobre a autora
Carolayne Ramos
Blogger

Carolayne Ramos, 22 anos, de semblante zen mas espírito ribombante. Não gosto de etiquetas, mas não me posso coibir de mencionar que já tenho uma Licenciatura em Estudos de Arquitetura, embora queira mudar o disco e estudar outras coisas.

Tenho-me vindo a descobrir uma eterna apaixonada por plantas e julgo que a ligação que tenho com os livros se justifique melhor, agora. Se não me encontrarem por aí, é porque me encontro a beber chás numa temperatura inaceitável em circunstâncias normais, a gastar os pés enquanto danço, a meditar na tentativa de conseguir levitar, ou a consumir qualquer que seja o conteúdo escrito, visual ou auditivo, e que me ensine alguma coisa.

Deixo-me levar imenso pela minha curiosidade, conversar sobre tudo e mais um pouco faz parte da ementa diária, sou de riso fácil e todo o meu corpo se expressa quando algo me desagrada. Defendo imenso que a evolução pessoal está vinculada à mudança de opinião, ao desconforto e à pré-disposição a mudar, e que o Universo, seja ele em que formato de crença for, sabe bem o teatro que gere e em que peças devemos participar. Nada é em vão, não obstante o sentido de responsabilidade nunca deixar de existir!

Para me acompanhares:
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Porquê a Carolayne e porquê falar sobre ser negra?

Quando comecei a pensar nesta série de guest posts os temas vieram primeiro e depois as pessoas. Queria muito começar a série a falar sobre racismo e ser negro, mas não queria ter mais uma pessoa branca a falar sobre o assunto. Tinha de ser alguém que soubesse realmente, que tivesse propriedade para falar sobre o que é ser negro: tinha de ser uma pessoa negra. Não fazia sentido de outra forma. É preciso falar sobre raça e sobre racismo. É preciso estar disposto a ouvir quem fala sobre raça e racismo.

A Carolayne foi a única pessoa que quis a falar sobre este tema, não porque a conheço, mas porque sei que era um bom ponto de partida começar com o ponto de vista dela. No futuro, se voltar a estes temas, poderá haver outras pessoas, mas também queria mostrar a minha esfera, as pessoas com quem lido quase diariamente, que sei que têm algo a dizer e que tanto me inspiram e ensinam. A Lyne faz parte do meu universo há uns anos (quatro? cinco? já não sei!) e já tive muitas conversas completamente diferentes com ela, algumas sobre racismo, muitas sobre outros temas da vida. O facto de saber como ela tem tanto para dizer dentro dela (mesmo que nem sempre o diga) fez logo dela a pessoa certa para este tema. Espero que tenhas sentido o mesmo que eu.

20 Replies to “Guest Post: Eu, ser humano, mulher negra”

  1. Gostei mesmo muito deste testemunho, gosto muito da Lyne e ela tem mesmo muito a dizer. Espero que o feedback disto seja bem positivo. Mil beijos 🙂

  2. Estou desde manhã sem saber o que escrever sobre o testemunho da Lyne, porque é tão honesto, tão especial, tão importante, que temo que nenhuma lhe faça justiça.
    Obrigada, de coração, por teres avançado com a ideia e por trazeres alguém com uma alma bonita e com tanto para dizer. Espero mesmo que chegue a muita gente <3

  3. Como amiga da Carolayne, li este texto com a voz e sentimento dela na minha cabeça. Deveriam existir mais projectos como este, uma porta aberta para a reeducação da sociedade e com o testemunho de uma mulher fantástica. Parabéns às duas pelo texto magnífico. Espero que chegue a muitas pessoas e que toque do mesmo jeito, ou até mesmo com mais intensidade, como me tocou.
    Um beijinho grande para as duas!

    Mas Bea! – Blog Instagram

  4. Mas que texto. Obrigada Carolayne por partilhares as tuas palavras, Não te cales e não deixes jamais que te calem. Adorei o teu testemunho e tenho a certeza que mais vais escrever 🙂

  5. Termino esta publicação de lágrimas nos olhos principalmente por reconhecer a injustiça, o tormento e a carga que é o racismo e todo o preconceito no geral. Tenho aprendido muito ultimamente mas conheço somente a pontinha do iceberg e este texto fez-me repensar muito a temática. Acho de uma imensidão ridícula o que este capricho de superioridade medieval/moderno se tornou, a carga preconceituosa que acarta e o encargo estrutural que envergou. Vergonhoso. Estarei na luta sempre que puder e a luta pode tanto ser online, como na rua como à mesa de jantar a abrir os olhos a um familiar. Que nunca nos calemos. Obrigada por isto <3 "i understand that i'll never understand, however i stand"

  6. No meu último encontrinho com a Lyne, dei por mim a despedir-me dela e a pensar que ela é a personificação perfeita do verso “tu és um mundo com mundos por dentro”. É surpreendente a quantidade de experiências, reflexões, ideias e sonhos que ela guarda dentro da sua timidez e da voz cristalina. Mas sabe partilhá-los sempre com muita mestria e objectividade. Não tenho a menor dúvida de que este artigo foi difícil de escrever (e de sentir tudo o que se sente quando partilhamos um testemunho destes ao mundo) mas também acredito que mais ninguém senão a Lyne conseguiria ser tão poderosa a posicionar-se em relação a um assunto que traz tantas fragilidades. Repito algo que já lho tinha dito: o melhor que posso fazer é compreender e lutar sempre que contra esta injustiça e desumanidade. Podemos ser melhores que isto.

    1. Esse verso é, sem qualquer dúvida, a Lyne! Ela é mesmo assim. Nós chegamos a uma camada e percebemos que ela tem tantas outras ainda por mostrar e é extraordinário como ela consegue mostrar parte dos mundos dela de uma forma tão poderosa.

partilha a tua teoria...