Este texto foi escrito ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico. Foi escrito para este projecto e é reproduzido aqui com autorização da autora.
Existem duas reações típicas quando partilho com alguém que sou nutricionista:
1) uma necessidade quase irracional de me garantirem que nunca precisaram de uma ou 2) uma curiosidade inabalável sobre tudo (e, especialmente, de confirmar o que é ou não verdade).
É caricato, mas também reflete bem a perceção da população em relação à nutrição. Uma mistura de caos e interesse que, por um lado, só justifica que continuemos a apostar na investigação das ciências da nutrição, mas que, por outro, gera uma popularidade negativa em torno da alimentação, através de partilhas sem fundamento científico, convicções pessoais, ideias baseadas enquanto consumidores (e não enquanto nutricionistas), e de falácias de autoridade (digo que é assim porque sou e fiz isto, logo, é verdade/inquestionável).
A nutrição acaba por ganhar uma dimensão errada pela confusão entre alimentação na perspetiva de consumidor e alimentação enquanto área científica da saúde.
Há mais na comida do que alimento e os portugueses sabem-no bem
Existe uma ideia banalizada sobre o perfil de um nutricionista (e dos seus clientes), onde as palavras-chave incluem “alimentação saudável”, “frango grelhado” e “excesso de peso”. Mas, na verdade, poucos realmente entendem o conceito de uma alimentação saudável e nutritiva.
A nutrição é (ou deveria ser) um serviço sem discriminação ponderal, racial, social, económica ou patológica. Porque, na realidade, não somos só o que comemos; somos o que pensamos, o que fazemos, as nossas circunstâncias, as pessoas de quem nos acercamos. E não nos alimentamos da mesma forma em todas as fases e intercorrências da nossa vida. Repara no quanto a forma como te alimentas varia ao longo dos anos (meses, se preciso!).
Uma outra particularidade é que, por engenho, não queremos alimentar-nos apenas para sobreviver. Há um contexto social e emocional que não pode ser ignorado, especialmente num país como o nosso. O estar à mesa faz parte de um conceito que honramos, os pratos das pessoas que mais estimamos são muito mais do que talento e mestria na receita e temos uma riqueza gastronómica sem precedentes. Há mais na comida do que alimento e os portugueses sabem-no bem.
Cem nutricionistas para 10 milhões de portugueses
Testemunho com otimismo que muitos já observam a nutrição não como uma ‘cultura de dietas’ mas sim como uma forma de aprenderem a comer e a desenvolver uma relação saudável com a hora das refeições. A reeducação alimentar e literacia em nutrição nunca foram tão essenciais como agora, em que há tanta oferta, informação e estímulos gastronómicos ao mesmo tempo. Procurar saber mais sobre o que os nutrientes fazem por nós e como o nosso corpo reage à forma como nos alimentamos (e que varia individualmente) já é a razão perfeita para nos sentarmos frente a frente com um(a) nutricionista. Aprender a comer melhor parece-me uma meta tão válida quanto qualquer outra.
Mas ainda estamos a dar os primeiros passos, e são curtos. Ainda temos um serviço público de nutrição muito limitado (cerca de uma centena de nutricionistas para 10 milhões de portugueses), que empurra as pessoas para uma de duas vias alternativas: procurar uma opção privada (geralmente, mais cara) ou, na ausência de carteira ou de tempo para esperar por uma consulta pública, acompanhar conteúdo gratuito sobre alimentação. A nutrição torna-se num bem de luxo quando deveria ser um serviço para todos e de otimização da saúde.
Este flagelo torna a nutrição mais inacessível (quando não o devia ser), descredibiliza a profissão por perpetuar a ideia de que podemos aprender mais sobre a nossa alimentação (foro pessoal) através de publicações genéricas (por vezes, falaciosas) sobre alimentação saudável (no qual o “saudável” é altamente discutível de indivíduo para indivíduo e onde não existem respostas nem regras “chapa três”) e gera um clima de desconfiança no caos entre partilhas sem fundamento e profissionais de saúde a tentar desmitificar esses conceitos através da ciência. Há uma razão para todos os meus clientes entrarem na minha primeira consulta com os dois pés atrás: a população não sabe em que acreditar ou chega ao consultório com um punhado de certezas (e ambos os comportamentos têm de ser trabalhados com paciência e muita informação).
Em conclusão
No fim, a afirmação é clara: todos podem e têm o direito de consultar um(a) nutricionista. Para compreenderem melhor como é que as suas rotinas influenciam o estar à mesa, para entenderem como a alimentação tem impacto em inúmeras tarefas do nosso dia-a-dia e não há um ponto de partida ponderal para agendar uma consulta (mas também está tudo bem se houver). Uma relação de confiança com um nutricionista é construída como com qualquer outro profissional de saúde. E o sentido crítico é um instrumento basilar na hora de acompanhar perfis, publicações ou correntes sobre alimentação (seja em que meio for).
O nutricionista é um profissional de saúde altamente habilitado, acreditado pela Ordem dos Nutricionistas (sem cédula, não exercemos) e preparado para vos mostrar que é possível ter uma relação saudável e agradável com a alimentação. Sabemos que não somos todos iguais e não comemos todos as mesmas coisas. Essa é a beleza de estar à mesa e temos gosto em trabalhar com esta arte.
Tenho 25 anos e coleciono canecas e memórias de viagem. Sou coordenadora do serviço de nutrição clínica no ramo da neurologia e autora do meu estimado projeto Bobby Pins. Se não estiver a beber um Earl Grey, estarei certamente a ler um livro na minha varanda ou a captar registos bonitos.
Para me acompanhares:
O meu blogue
Porquê a Inês e porquê falar sobre nutrição?
De início, quando comecei a apontar temas para esta série de guest posts, a nutrição foi o terceiro tema que apontei. É um tema que me interessa muito, mas sobre o qual não tenho habilitações para falar. Por um lado, tenho historial com nutricionistas e fui acompanhada por um durante dois anos, entre os 14 e os 16 anos. Por outro lado, é um tema que me chega muitas vezes pelas redes sociais com verdades que não o são. Entre sumos detox e água com limão, queria ter aqui um texto que abordasse a nutrição sem mitos.
Não pensei logo na Inês. Na verdade, o nome dela veio de sugestões unânimes e, para mim, fez todo o sentido. Acompanho a Inês na blogosfera há anos e assim sinto que acompanhei todo o trajecto académico da Inês. Ainda me lembro de quando ela partilhava algumas coisas sobre o que ia aprendendo no curso. Fazia todo o sentido e tive a sorte de, com liberdade criativa para falar da nutrição como preferisse, a Inês ter feito um texto que conseguiu ser exactamente o que eu queria e não sabia.
Também fui acompanhada por uma nutricionista, mais ou menos, durante dois anos e, por isso, a minha experiência neste campo é muito redutora. Portanto, saio daqui com a bagagem bem cheia, até porque acho fundamental desmistificar o trabalho de certos profissionais, tendo em conta que o foco das suas competências acaba por ser diminuído pela sociedade em geral.
Embora tínhamos áreas de formação distintas, consegui rever-me logo no início do texto da Inês.
Obrigada, a ambas, por este guest post incrível!
Oh, que bom ver que o texto da Inês te deu tanto! Achei-o muito esclarecedor e senti logo que ia ajudar a dar mais perspectiva a quem o ler. Ainda bem que não me enganei!
Há, pelo menos, dois acompanhamentos médicos que deveriam ser acessíveis a toda a população: a terapia (seja de que tipo for, desde que fidedigna) e a nutrição. Ao longo da vida, estive em contacto com 3 nutricionistas diferentes e apenas 1 é que realmente me ensinou como começar a criar uma relação saudável com a comida. Pelo menos, foi a que me deixou mais à vontade com o facto de me focar mais na qualidade da minha alimentação e não propriamente no peso que eu deveria perder em x tempo…
Só comecei a estar mais consciente do que colocava no prato a partir do meu segundo ano da faculdade, muito por pesquisas pessoais, no entanto, sem nunca usar sites aleatórios e sempre preocupada com a veracidade das informações. Claro que nada substitui um acompanhamento personalizado, mas é como a Inês diz: trata-se de um investimento caro e que deveria estar mais acessível…
Contudo, creio também tenha muito a ver com as prioridades de cada um; acredito que com alguma organização, uma única consulta poderá perfeitamente ser paga, mais não seja para se aniquilar estigmas.
Adoro o modo como a Inês fala da sua área sem cobranças, ou seja, sem esperar que as pessoas entendam, por instinto, do que é que ela está a falar, usando um tom pedagógico, simples e educativo! Dá-me um gosto sincero ler e ouvir o que ela tem a dizer, porque paixão não lhe falta! ? Também foi pela sua influência que o meu mindset tem vindo a mudar e a tornar-se melhor a cada dia! Portanto, muito obrigada, não só a ti Inês, por teres escrito um artigo maravilhoso e por seres como és, como a ti Sofia, por a teres convidado e seres genial! ♥️
Beijocas,
LYNE, IMPERIUM BLOG // CONGRESSO BOTÂNICO – PODCAST
Obrigada por partilhares a tua visão sobre o assunto! Sinto o mesmo em relação aos acompanhamentos médicos que deviam ser mais acessíveis, porque mesmo havendo psicólogos e nutricionistas em centros de saúde (não sei se todos), acaba por não ser um acompanhamento tão simples e regular quanto devia ser.